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Bernardo Machado

'Máscara é coisa de viado': linguajar de Bolsonaro ainda pauta o debate

Bernardo Machado

09/07/2020 09h38

Bolsonaro publica vídeo tomando hidroxicloroquina e se diz melhor da Covid-19. Fonte: Reprodução

A suspeita e a posterior confirmação de contaminação do presidente Jair Bolsonaro pelo Sars-CoV-2 causaram ligeiro impacto. Em poucos instantes, as informações nos infectaram e a reação ferveu. Houve quem tenha lamentado, quem tenha sinalizado comemoração, quem ironizou e até quem desconfiou.

Logo o #forçaCovid disseminou-se no Twitter, com grande alcance. Segundo Pedro Barcela, na segunda-feira (6), 43,93% dos usuários formaram o enorme cluster em torno da hashtag. Em seguida, foi a vez da pergunta: "devemos desejar a morte de Bolsonaro?". O novo dilema tomou colunas nos principais meios de comunicação.

Já na manhã de terça-feira (7), o presidente, de máscara, concedeu uma entrevista para a imprensa. Após afirmar a necessidade de atenção à economia, se afastou de jornalistas, tirou a proteção facial e, sorridente, afirmou que, para quem não é velho, "a possibilidade de algo mais grave é próxima de zero". Mais tarde, publicou um vídeo em que tomava hidroxicloroquina como forma de tratamento. O dia encerrou com notícias sobre declarações do presidente a respeito do uso de máscara: "coisa de viado".

Contaminado, o presidente Jair Bolsonaro quer voltar à forma após o susto de Queiroz: produz polarizações, usa medicamentos sem comprovação científica de eficácia, desqualifica a ciência e despreza a população LGBTIQIA+. Assim, coloniza o debate nos termos que lhe favorece.

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O universo de discurso de Jair Bolsonaro brutaliza as palavras e subtrai seus sentidos, explicou o antropólogo Omar Ribeiro Thomaz, em entrevista anterior para a coluna. No caso mais recente, o presidente fez do vírus uma plataforma de ataque e de retomada do debate que vinha perdendo nas semanas anteriores pelos escândalos que rondam sua família.

Para não deixar dúvidas sobre a contaminação, dessa vez o exame foi feito com o nome do presidente estampado (vale perguntar qual foi o motivo para mudar o protocolo, porque antes ele usou pseudônimos). Uma vez infectado, Jair Bolsonaro passou a se produzir como um "brasileiro normal", juntando-se a cerca de 1,6 milhão de pessoas que já contraíram o novo coronavírus. Se no início de março essa era uma doença muito associada à elite econômica viajante, agora ela se disseminou pelo território – atualmente, afeta mais pessoas de baixa renda. Aqui o discurso procura produzir uma conexão com quem padece em casa ou nos hospitais públicos e estabelece uma relação de proximidade com a população.

Entretanto, longe de agonizar, Jair Bolsonaro age para que seu corpo se torne um exemplo do corpo nacional. Ao tomar a hidroxicloroquina, sente-se bem, pode sorrir, conversar e, quiçá, trabalhar. Não vale, porém, mencionar os quase 70 mil mortos pela doença. A ciência e seus métodos de checagem de dados pouco importam se a comparação é a experiência física da maior autoridade do país. Nesse aspecto, a retórica descarta, pela vivência pessoal, a ideia de que não é necessário seguir as orientações de epidemiologistas (ou da ciência como um todo).

Ao menosprezar o uso de máscaras, o presidente recorre à ofensa da população LGBTIQIA+. Dessa forma, anima o grupo que votou no candidato por não ser "politicamente correto" e por reforçar uma masculinidade virulenta. Nesse ponto, o vocabulário atualiza a memória de tempos "áureos" em que o deputado ganhava espaço político e ainda não era suspeito de desvios de conduta.

Por fim, com o "desejo de morte" de parte de seus opositores, o presidente alocou-se como "vítima" do vírus e da própria "oposição". Ao longo dos anos, Jair Bolsonaro sugeriu fuzilamentos e elogiou mortes de quem discordava. Ao invés de ser condenado, recebeu elogios por ter sido sempre "sincero". Uma vez presidente, suas palavras e ações materializaram um deslocamento dos sentidos. Quando uma parcela de pessoas que lhe fazem oposição sugeriu desejar sua morte, criou-se uma relação paradoxal. De um lado, aliados do presidente puderam acusar essas pessoas de hipócritas – afinal, como defensores/as dos direitos humanos desejam a morte de alguém? De outro, nota-se como a solução para as ações nefastas do presidente passa a ser dada pela própria lógica que ele promoveu: o extermínio do outro.

Sob esses signos, Jair Bolsonaro retomou tanto o conteúdo quanto a forma de enlaçar o debate político. Se antes ele estava acossado pelas investigações, agora o presidente procurou eclipsar outros temas com a sua vida.

Para escapar desse vocabulário bolsonarista, vale apontar para suas irresponsabilidades. Primeiro, no que toca a atenção à saúde, o presidente não é igual a qualquer outro cidadão ou cidadã no país e seu corpo não é sinônimo de Brasil. Isso porque Jair Bolsonaro dispõe dos melhores hospitais e assessores para cuidar de sua saúde. Não há dúvida de que está sendo monitorado com atenção por profissionais altamente competentes. Segundo, ao qualificar que o uso de máscaras é "coisa de viado", ele sugere que vale a pena arriscar a saúde de outras pessoas para provar sua virilidade. Em nome de uma ideia apequenada de heterossexualidade, pode-se matar cidadãos e cidadãs. Por fim, a autoridade máxima do país promoveu, por décadas, um discurso de morte, mas se afasta dele quando lhe convém.

Jair Bolsonaro deve assumir suas inúmeras responsabilidades enquanto presidente de um país. Deve responder pelo uso que fez e faz de dinheiro público, pelas atuações desastrosas dos ministérios da saúde e da educação, pelos vetos a auxílio emergencial, a água potável e a leitos para indígenas. A retórica do presidente contaminou nosso debate público, por isso é importante saber identificar esse vocabulário e se desvencilhar dele para produzir um outro horizonte de ação republicana.

Sobre o Autor

Bernardo Fonseca Machado é doutor em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo. Desde 2018, trabalha como professor na Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás. Também foi Visiting Student Research Collaborator na Universidade de Princeton, nos Estados Unidos (2015-2016) e, em 2016, co-escreveu o livro Diferentes, não desiguais: a questão de gênero na escola pelo selo Reviravolta da Companhia das Letras. Desenvolve pesquisas acadêmicas como membro dos grupos Etnohistória e do NUMAS (Núcleo dos Marcadores Sociais da Diferença), ambos da USP.

Sobre o Blog

Cultura, relações sociais, diversidade, diferença e desigualdade são temas centrais do blog. A proposta é discutir noções e práticas contemporâneas que afetam nossas percepções de mundo utilizando a metodologia da antropologia.