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Bernardo Machado

O que os tempos da pandemia, da política e da nostalgia nos revelam

Bernardo Machado

30/05/2020 04h00

Colagem de duas imagens. Na primeira, uma máscara sobre o batente de uma janela. Na segunda, o presidente Jair Bolsonaro olhando o relógio. Fonte: iStock e Pedro Ladeira/Folhapress

Nostalgias, projeções e profecias transbordam no pandêmico presente. Muitas pessoas lembram, com pesar, os últimos encontros antes da interrupção da vida de alguém amado; há quem calcule o dinheiro para os próximos meses, estimando gastos e sobrevivências; e existe quem imagine o retorno catártico às ruas, numa espécie de futuro que possa repetir o passado. No tempo da pandemia, experimentamos a sensação de sermos estrangeiros do agora – nos faltam códigos e direções, resta um vagar tateante.

Em paralelo, o acelerado tempo da política atropela o noticiário. Presenciamos a reunião ministerial acalorada e ansiosa (que pouco debateu sobre a pandemia e muito tratou sobre disputas de poder), assistimos à queda de braço do presidente com outras instituições, e, também, acompanhamos a tranquilidade para definir o próximo ministro da saúde. No horizonte, os resultados eleitorais no (ainda longínquo) ano de 2022 parecem nortear uma parte considerável da classe política – particularmente do governo federal.

O atrito entre o tempo da pandemia e o tempo da política resulta num ambiente perverso para o país.

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 As temporalidades da pandemia

No plano das práticas cotidianas da vida social, estamos produzindo muitas formas de lidar com esta fase contagiosa, conforme analisa o professor de antropologia João Felipe Gonçalves da USP (Universidade de São Paulo). Quatro grandes tipos de temporalidade agem no cenário contemporâneo, classifica o professor. Em primeiro lugar, existiria uma temporalidade de ruptura: "ela enfatiza a mudança radical em relação ao momento anterior à pandemia". Uma espécie de percepção de que o vírus instaura um antes e um depois. Um segundo tipo seria típico dos grupos que conseguem realizar o distanciamento físico em suas casas, para quem o tempo soa "abundante e homogêneo". Tal percepção se basearia na "suposta similaridade entre todos os dias, na intercambialidade entre o dia e a noite".

De forma menos evidente, existiria ainda a temporalidade do retorno, isto é, a alusão recorrente às imagens da natureza retomando o espaço urbano, as frequentes discussões sobre crises passadas, os relatos nostálgicos, as reprises na TV… "Tudo isso revela que, tanto quanto causa mudança, a pandemia traz o passado à tona", descreve Gonçalves. Por fim, existiria o que o antropólogo chamou de "tempo de viralizações", isto é, a multiplicação rápida – ou seja, viralizada – de características da sociedade nacional, como as mortes desproporcionais de pessoas negras e pobres, a acelerada precarização do trabalho e a multiplicação de casos de violência contra mulheres. Nesse sentido, não há nenhuma ruptura, apenas a persistência e o incremento de velhas desigualdades e atrocidades, conclui o antropólogo.

A concomitância de todas essas modalidades temporais impõe desafios. Experimentamos uma relação tensa entre passado, presente e futuro, afinal, para muitas pessoas, o futuro imaginado no passado pré-pandêmico parecia mais agradável do que o futuro concebido em nosso presente contaminado. Em meio a esses dilemas, nada pacificados, convivemos com os descalabros da política.

Tempo da política

Dá-se o nome de "tempo da política" ao período eleitoral no qual a eleição não corresponde apenas ao processo de escolha democrática, mas também a redefinição de pertencimentos e de fidelidades sociais e partidárias, conforme definiu o antropólogo Moacir Palmeira, em texto de 2004. É um momento caracterizado pelo realinhamento social da população e pela proliferação de disputas e acirramentos, "existem excessos que extrapolam o debate regular, mas que são aceitáveis, justamente por estarem circunscritos a um tempo de muita conturbação", explica Ana Claudia Marques, professora de antropologia da USP. Após o período da disputa eleitoral, há um momento de trégua e de estabelecimento de relações mais apaziguadas, que garantem o razoável funcionamento da máquina estatal e do convívio social. Contudo, esse não parece ser o tom adotado após 2018.

"O presidente Jair Bolsonaro confunde o tempo da politica com o tempo da gestão", analisa Marques. Os atos e falas do presidente evidenciam como ele não cessou sua campanha como candidato e se comprometeu, muito rapidamente, com as ambições eleitorais de 2022. Se esses interesses já se anunciavam em 2019, eles entraram em ebulição após a emergência da pandemia, justamente porque, na equação do governo, seria impossível gerir, concomitantemente, a saúde, a economia e a política. "O presidente presume que o caos econômico vai derrubar suas ambições políticas e ameaçar a sua reeleição, por isso se recusa a tomar a frente de um governo e da gestão numa situação sanitária grave", avalia Marques.

Curiosamente, durante a disputa eleitoral, no período combinado de tempo da política, o então candidato fez movimentos para se esquivar de debates (antes do atentado à sua vida e depois de receber alta médica), conforme lembra a professora. Na época, Jair Bolsonaro optou por acirrar nas redes sociais (e não em arenas públicas) o embate com seus opositores. "Uma vez investido de poder, o presidente se comporta como um adversário que pretende esmagar os seus inimigos com a disposição da palavra".

Parece que o próprio debate público está contaminado por essa impaciência pelo ano de 2022 e pouco menciona as eleições de 2020. Quando comparamos as pesquisas de intenção de voto, notamos muitas tratando de supostos cenários para a presidência e escassas menções às intenções de voto deste ano, pondera Marques.

Como resultado, além das temporalidades da pandemia, enfrentamos um tempo acelerado e desarranjado no campo da política, o que nos leva ao nebuloso e caótico agora.

A gramática do presente, o vocabulário do futuro

"O tempo de crise política permanente imprime uma dinâmica caótica na temporalidade. Toda semana esperamos qual fato vai levar à nossa sensação de suspensão. A sensação é de que estamos fora do cotidiano. Se não é um vídeo, é um insulto, é a polícia que que vai na casa do governador", avalia o antropólogo Omar Ribeiro Thomaz, professor da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). O resultado é um "tempo delirante" que nos aproxima de um "universo de violência genocidário" e que guarda similaridade com momentos de guerra civil, explica.

Os atritos afetam nossa capacidade de nomear o que experimentamos. Em primeiro lugar, explica Omar, presenciamos um processo de brutalização das palavras e de subtração de seus sentidos. Mesmo antes da pandemia, "as ameaças presidenciais às instituições passaram a ser chamadas como mero 'estilo', e a reinvindicação por direitos passou a ser chamada de 'mimimi'". Após o advento da Covid-19, novas banalizações se instauraram: "manifestar compaixão ou empatia, no vocabulário bolsonarista, começou a ser hipocrisia". Citando o pensador George Steiner – crítico do vocabulário empregado no período nazista –, o antropólogo define o cenário: "A linguagem deixa de estimular o pensamento, apenas o confunde". Como resultado, vivemos um presente em que as palavras foram furtadas de seu sentido.

Além disso, presenciamos um cenário no qual faltam termos, palavras para tratar daquilo que enfrentamos. Como descrever nossa negação, ou temor, em encarar o luto das milhares de mortes? Estamos acometidos de  uma "lutofobia"?

No horizonte, será necessário resgatar o sentido das palavras – aquelas brutalizadas – e também ampliar nosso vocabulário para navegar nesse mundo. Nomear a coexistência dessas múltiplas temporalidades sintetiza a existência desse tempo delirante. Enquanto continuarmos subtraindo os significados das palavras e negando a criação de uma nova gramática, permaneceremos à deriva.

Sobre o Autor

Bernardo Fonseca Machado é doutor em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo. Desde 2018, trabalha como professor na Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás. Também foi Visiting Student Research Collaborator na Universidade de Princeton, nos Estados Unidos (2015-2016) e, em 2016, co-escreveu o livro Diferentes, não desiguais: a questão de gênero na escola pelo selo Reviravolta da Companhia das Letras. Desenvolve pesquisas acadêmicas como membro dos grupos Etnohistória e do NUMAS (Núcleo dos Marcadores Sociais da Diferença), ambos da USP.

Sobre o Blog

Cultura, relações sociais, diversidade, diferença e desigualdade são temas centrais do blog. A proposta é discutir noções e práticas contemporâneas que afetam nossas percepções de mundo utilizando a metodologia da antropologia.