Stonewall: a primeira parada do orgulho LGBT foi uma revolta
"Enquanto meu povo não tiver seus direitos em todos os EUA, não temos razão para celebrar". (Marsha P. Johnson)[1]
O tema da parada do orgulho LGBTI+ de São Paulo desse ano, que acontecerá no dia 23 de junho, será "50 anos de Stonewall" e deverá trazer uma retrospectiva do último meio século do movimento. Mas afinal o que foi Stonewall?
Na madrugada de 28 de junho de 1969, gays, lésbicas, drag queens e transexuais curtiam a noite em um dos poucos bares LGBTI+ da cidade de Nova York, o Stonewall Inn, localizado na Rua Christopher no bairro de Greenwich Village.
Naquela época, não era ilegal ser homossexual ou trans, mas vender bebida alcoólica para a comunidade era considerado indecente e passível de multa. Por essa razão, o Stonewall Inn – assim como muitos bares em Nova York – era clandestino, de propriedade da máfia genovesa e também adotava diversas táticas para escapar da regulamentação local; dentre elas, subornar as delegacias para avisarem as fiscalizações iminentes. Quando a polícia chegava para batida, a regra era conhecida: clientes deveriam parar o que estavam fazendo e vestir ao menos três peças de roupa atreladas ao sexo designado ao nascer (meninos vestem azul, meninas vestem rosa).
Mas especificamente na noite de 28 de junho de 1969, o bar foi invadido por uma equipe policial que não estava na folha de pagamento de Fat Tony – o dono do Stonewall –, resultando na prisão dos proprietários, funcionários, drag queens e travestis, identificadas pelos oficiais como gays.
Enquanto as pessoas eram arrastadas para fora do bar, os demais clientes, liderados por Marsha P. Johnson – travesti negra em situação de rua e, posteriormente, ícone da militância LGBTI+ – começaram a jogar moedas de um centavo ("dirty cupper" ou cobre sujo) nos policiais, em alusão ao homófono "dirty cop" – significando policial sujo, corrupto.
Os ânimos se exaltaram, e as pessoas inconformadas passaram a arremessar pedras, garrafas e parquímetros, queimar carros e levantar barricadas, obrigando a guarda a se esconder dentro do bar que acabara de invadir. As revoltas de Stonewall, como ficaram conhecidas, duraram três dias, contabilizando diversos feridos, entre policiais e manifestantes, e alguns presos.
Foi o estopim para o que se conhece hoje como militância LGBTI+ americana, originando diversos grupos atuantes ainda hoje, como a Frente de Libertação Gay (Gay Front Liberation – GFL), a Aliança de Ativistas Gays (Gay Activists Alliance), Radicalesbians (ou Lésbicas Radicais), Travestis Ativistas Revolucionárias de Rua (STAR – Street Transvestite Activists Revolutionaires), além de várias publicações voltadas exclusivamente ao público LGBTI+, como o Mattachin e o Lambda.
No ano seguinte (1970), foi celebrado o primeiro Dia da Libertação Gay da Rua Christopher (Christopher Street Gay Liberation Day), ou como ficou conhecida a primeira parada do orgulho LGBTI+ de que se tem registro, da qual participaram milhares de manifestantes.
É certo que manifestações por direitos LGBTI+ já existiam, mas nunca antes de forma tão aberta. Normalmente, para evitar represálias e discriminação, ativistas escondiam seus rostos para evitar a identificação. Foi a partir de 1970, que o movimento LGBTI+, embalado por outros movimentos pelos direitos civis (feminista, negro, antiguerra), passou a demandar espaço também abertamente.
Desde então, paradas de orgulho LGBTI+ de formato similar passaram a ser realizadas em diversos países. A primeira em terras brasileiras ocorreu no Rio de Janeiro em 1995 logo após uma conferência da ILGA (Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais e Intersex). Já a famosa manifestação na Avenida Paulista, em São Paulo, se deu no ano de 1997 e é hoje conhecida como a maior parada do orgulho LGBTI+ do mundo, contando com mais de 3 milhões de participantes na edição de 2018, de acordo com a equipe de organização.
Essa breve retrospectiva nos faz refletir sobre as palavras de Marsha P. Johnson, subtítulo dessa coluna: "Enquanto meu povo não tiver seus direitos em todos os EUA, não temos razão para celebrar".
Direitos importantes foram conquistados nessas últimas décadas, especialmente para gays, lésbicas e bissexuais nos EUA e em parte da Europa. Mas será que o mesmo pode ser dito em relação ao Brasil, especialmente para o "povo" de Marsha – a população trans e travesti, negra e em situação de rua?
Em nosso país, são reconhecidos os direitos ao casamento, à adoção, à herança, à previdência, à alteração do nome civil e ao reconhecimento da redesignação sexual, esses dois últimos para a população trans. Mas tudo isso pela frágil via de decisões do Supremo Tribunal Federal (STF), cuja garantia é, de certa maneira, precária, podendo ser revertida a qualquer momento, caso o Congresso decida passar lei em sentido contrário.
Também não temos, em nosso ordenamento jurídico, qualquer lei federal que proteja a população LGBTI+ de discriminação. A questão é assunto na plenária do STF, já contando com maioria de votos favoráveis à equiparação da discriminação por orientação sexual e identidade de gênero à discriminação racial, de cor, étnica, religiosa e de procedência nacional, embora o julgamento ainda não tenha sido concluído.
A situação de pessoas T é mais alarmante. Ainda hoje, cinquenta anos desde que travestis contribuíram para a inauguração do movimento LGBTI+ como o conhecemos, essa população é, muitas vezes, relegada à marginalização social e ao trabalho sexual pela falta de outras oportunidades e acolhimento familiar, e também angaria menos comoção e envolvimento social que se vê para a proteção de direitos de gays, lésbicas e bissexuais, especialmente quando se trata de pessoas brancas e de classe média.
Em grande parte, essa posição foi deliberada pelo próprio movimento LGBTI+, logo em seus primórdios, que optou por tirar as pessoas T de evidência, sob a alegação de que alimentavam estereótipos sobre a comunidade, o que prejudicaria o movimento. Foi o que defenderam os organizadores da Parada da Dia da Libertação Gay da Rua Christopher em NY, já em 1973 – 4 anos depois das Revoltas de Stonewall.
A falta de apoio reverbera seus efeitos: estima-se que, no Brasil, a expectativa de vida da população T seja de 35 anos, enquanto da população em geral é mais que o dobro, de 78 anos. Além disso, parcela significativa da população T vem sendo expulsa dos ambientes escolares quando ainda é criança, conforme relatam estudos. A própria Marsha, símbolo de resistência, representou essa triste realidade até o fim. Seu corpo foi encontrado às margens do Rio Hudson em 06 de julho de 1992, aos 46 anos de idade; e as investigações sobre os motivos de sua morte ainda não foram encerradas.
Assim, enquanto se comemora as muitas conquistas dos últimos 50 anos desde Stonewall, as marchas no mês de junho devem lembrar daquelas e daqueles que lutaram antes da atual geração para que as pessoas LGBTI+ possam viver e existir com direitos. É fundamental a atenção: o que está dado pode ser retirado e ainda há muito por que se revoltar.
[1]Tradução livre de:"As long as gay people don't have their rights all across America, there's no reason for celebration." (Marsha P. Johnson)
As imagens 2 a 5 compõem a exposição "Love & Resistance: Stonewall 50", em cartaz na Biblioteca Pública de Nova York, entre 14/02 e 13/07/2019
Este texto foi escrito em parceria com Denys Yamamoto.
CORREÇÃO: Na primeira versão deste texto constava que a primeira parada LGBTI+ no Brasil ocorrera em São Paulo em 1997. Um leitor generoso nos auxiliou a corrigir o erro. A primeira parada se deu no Rio de Janeiro em 1995.
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