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Bernardo Machado

Covid-19, o trabalho doméstico e a pandemia da desigualdade

Bernardo Machado

18/03/2020 04h00

Pessoas em fila na frente de um hospital público na cidade de São Paulo (Fernando Cymbaluk/UOL)

Ontem, a Prefeitura de Miguel Pereira (RJ) declarou a morte de uma mulher de 63 anos com "sintomas de coronavírus". Ela prestava serviços domésticos numa residência na capital carioca. Sua empregadora havia testado positivo para o covid-19 após retornar da Itália. Segundo a nota divulgada, a paciente saiu de seu ambiente de trabalho diretamente para o Hospital Municipal Luiz Gonzaga em "quadro grave" e, no leito, faleceu.

Embora a Secretaria Estadual de Saúde do Rio de Janeiro não tenha confirmado se o óbito decorre do novo vírus, o caso anuncia o porvir. Afinal, em um país historicamente desigual, apesar do covid-19 não discriminar no contágio, nós o fazemos no momento da ação. Como tem sido analisado em diversas colunas e reportagens, o vírus afetará de modo distinto os diferentes corpos – não somente por sua biologia –, mas pelas práticas de desigualdade que produzimos socialmente. As políticas de atenção à saúde precisarão levar em conta, além da idade, outros critérios para atender a população nacional, como classe, raça, gênero e dimensões da deficiência – para mencionar apenas alguns.

Trabalho doméstico

"Nós, trabalhadoras domésticas, corremos o risco. E se pegar, vamos ficar ao deus-dará", explicou Eliete Ferreira da Silva, trabalhadora e ativista pelos direitos das trabalhadoras em residência. Curiosamente, Eliete concedeu entrevista para a coluna antes do caso no Rio de Janeiro; na semana passada, ela já antecipava as condições a serem vividas.

Sobre o assunto, interessa apresentar alguns dados. O trabalho doméstico corresponde a uma profissão majoritariamente feminina: as mulheres são 96,6% do total de profissionais (segundo dados do Dieese de 2018). Se, de um lado, elas dependem da presença física no local de trabalho para o recebimento do pagamento pelos serviços prestados, de outro, são as responsáveis pela higienização da casa e de seus cômodos contaminados. Longe de ser um problema menor no cálculo das políticas de saúde, é preciso considerar que as trabalhadoras em residência correspondem ao terceiro setor que mais emprega mulheres na região metropolitana de São Paulo (14,5%)– atrás somente da administração pública (21,9%) e do comércio (16,4%).

Somado a isso, nas últimas décadas, houve um envelhecimento da categoria, como explica a pesquisa do Dieese (2018). Até 1992, 40% das trabalhadoras em residência tinham entre 25 e 39 anos e 29,7% somavam 40 anos ou mais. Em 2018, nota-se um novo perfil, 23,1% das profissionais tem entre 25 e 39 anos e 73,6% estão acima dos 40. Além disso, no início dos anos 1990, as pessoas negras somavam 52% do total e, em 2018, chegaram a 56,1% do contingente. Por fim, a proporção de chefes da casa também aumentou consideravelmente (de 15,1%, em 1992, para 41,8%, em 2018). Assim, o contingente do trabalho doméstico tem se caracterizado por mulheres negras, mais velhas e com maiores responsabilidades na condução de suas próprias famílias. Ou seja, trata-se de um grupo populacional que, marcado por classe, raça e gênero, enfrentará grandes riscos para sua saúde e para a de sua família: "Para nós, as trabalhadoras domésticas, principalmente as trabalhadoras que não tem registro em carteira, se ela tiver que fazer quarentena, onde ela vai ficar assegurada?", pergunta Eliete.

Se confirmada a morte dessa senhora no município de Miguel Pereira, por covid-19, enquanto trabalhava na casa de uma pessoa já diagnosticada com a doença, estaremos diante de um evento tanto perverso quanto real: a virulência social de uma pandemia de saúde.

Outras desigualdades

Essa violência afetará ainda outros corpos. É preciso continuar a alertar as autoridades responsáveis e o conjunto cidadão sobre as fragilidades de cada posição social e de cada profissão…

Veja também:

Por exemplo, as orientações do Ministério da Saúde não estão levando em consideração alguns segmentos da população, como as pessoas cegas, explica o antropólogo Pedro Lopes, da Universidade de São Paulo. O aplicativo formulado pelo governo não permite a leitura das informações nele contidas.

Descrição da Imagem – Tweet de Gustavo Torniero @torniero. "E qual não foi minha surpresa ao baixar agora o aplicativo "coronavírus-SUS" e constatar que ele é completamente inacessível para pessoas cegas que usam leitores de tela no celular? Não dá para fazer absolutamente nada. Não é possível tocar em um botão sequer!"

Já os motoristas de ônibus, como é intuitivo inferir, estarão sujeitos a contrair o novo coronavírus pela quantidade de pessoas que circula nos veículos. Entretanto, o grupo possui ainda outros fatores agravantes. Em pesquisa realizada pela Confederação Nacional do Transporte em 2017 sobre o perfil socioeconômico dos motoristas de ônibus urbanos, aprendemos que 98% são homens, 25% tem mais de 50 anos e que, dentre aqueles que utilizam ou já haviam utilizado medicamentos controlados, 46% relataram prescrição para hipertensão e 14,6% para diabetes. Estas são justamente algumas das condições médicas pré-existentes (pressão alta, doenças cardíacas e diabetes) que criam condições da doença do coronavírus progredir para quadros mais graves. Eles são, portanto, profissionais que mereceriam atenção redobrada dos órgãos responsáveis.

"Quem acaba sofrendo são as pessoas que dependem do sistema de saúde para a manutenção dos seus corpos", explica Pedro Lopes: pessoas com HIV, com diabetes ou que precisam de hemodiálise.

Eliete Ferreira da Silva, ainda denuncia:"Os centros de saúde têm um atendimento de péssima qualidade para a população carente, para a população de periferia. Você chega no pronto socorro e vão mandar para casa porque é uma virose". Os dados da Pesquisa Nacional de Saúde realizada pelo IBGE (2013), confirmam que 10,6% da população brasileira adulta (15,5 milhões de pessoas) já se sentiu discriminada na rede de saúde tanto pública quanto privada. A maioria (53,9%) disse ter sido maltratada por "falta de dinheiro" e 52,5% em razão da "classe social", 13% foram vítimas de preconceito racial, 8,1% por religião ou crença e 1,7% por LGBTIfobia.

Se, em condições cotidianas, o atendimento à saúde no Brasil já gera relatos de discriminação, como o país enfrentará a pandemia que se instaura?

Sobre o assunto, o fundador e editor do site Periferia em Movimento, Thiago Borges, listou 16 perguntas para discutir o impacto da pandemia nas periferias. O alerta recai para a forma como o Estado irá tratar da situação: será entendido como um assunto de saúde ou de polícia? "As periferias vão receber recursos da saúde de forma proporcional às nossas necessidades?" ou "Os governantes vão acionar a Polícia Militar para controlar a população nas periferias?".

As ações

Diante da ausência de políticas explícitas voltadas para segmentos desassistidos, redes de suporte passam a se organizar. Eliete conta, por exemplo, sobre um grupo de Whatsapp criado justamente para orientar as profissionais: "No grupo a gente explica que tem que ter álcool em gel ou álcool normal. Na hora que entrar no ônibus e sentar, tem que fazer a higienização na mão, e na hora que descer, fazer novamente. É a única orientação que conseguimos dar para a trabalhadora".

Em termos jurídicos, os ministros Luiz Henrique Mandetta (Saúde) e Sérgio Moro (Justiça e Segurança Pública) publicaram na terça (17/03) uma norma interministerial que determina: o descumprimento de ordem de isolamento levará à responsabilização civil, administrativa e criminal, com previsão de detenção do infrator. Diante disso, arrisco uma pergunta: caso uma pessoa tenha o isolamento domiciliar determinado por agente público em função do covid-19 e se recuse a dispensar (de forma remunerada) trabalhadoras/es domésticas/os, ela poderá ser enquadrada na nova normativa e responder por seus atos? Me parece fazer sentido, haja vista que esses empregadores estariam expondo tais profissionais ao contágio da enfermidade.

Essas mortes que vieram e aquelas que, invariavelmente, estão por vir tem o potencial de nos rasgar e assombrar, justamente por relembrar nossa fragilidade humana e expor nossas perversas assimetrias e violências estruturais.

A responsabilização social é urgente para o confrontamento tanto do vírus quanto das condições de desigualdade que assolam o país. Devemos cobrar do Estado e de nossos governantes que atendam de forma equitativa a sua população (diversa e desigual) além de criar redes de proteção social para grupos populacionais com condições e corpos mais vulneráveis.

 

 

 

Agradeço a Denys Yamamoto pela ideia da pauta, a Carlos Miranda Oliveira pelas orientações, a Eliete Ferreira da Silva pela entrevista e a  Pedro Lopes pelas sugestões para tornar o texto acessível para pessoas cegas.

Sobre o Autor

Bernardo Fonseca Machado é doutor em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo. Desde 2018, trabalha como professor na Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás. Também foi Visiting Student Research Collaborator na Universidade de Princeton, nos Estados Unidos (2015-2016) e, em 2016, co-escreveu o livro Diferentes, não desiguais: a questão de gênero na escola pelo selo Reviravolta da Companhia das Letras. Desenvolve pesquisas acadêmicas como membro dos grupos Etnohistória e do NUMAS (Núcleo dos Marcadores Sociais da Diferença), ambos da USP.

Sobre o Blog

Cultura, relações sociais, diversidade, diferença e desigualdade são temas centrais do blog. A proposta é discutir noções e práticas contemporâneas que afetam nossas percepções de mundo utilizando a metodologia da antropologia.