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Bernardo Machado

Quem são e no que acreditam os militares brasileiros

Bernardo Machado

06/03/2020 04h00

Soladados do Exército fazem a segurança do Palácio da Alvorada, em 2018. Foto: Sérgio Lima/Poder360

No intervalo de poucas semanas, a presença de militares no Planalto Central ganhou os holofotes: o general do Exército Walter Braga Netto assumiu a Casa Civil; e chefe do Gabinete de Segurança, o general Augusto Heleno, classificou como chantagem o impasse entre o Congresso e o Executivo a respeito do Orçamento da União.

Diante dessas posturas mais recentes, considerei prudente retomar alguns dados sobre o perfil socioeconômico dos militares, bem como suas principais ideias e seus princípios norteadores. Dessa forma, podemos, quem sabe, qualificar o debate e compreender de onde partem tais enunciados e o que eles significam no imaginário das Forças Armadas.

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Quem são?

O perfil socioeconômico dos militares brasileiros foi analisado pelos pesquisadores Celso Castro e de Jimmy Medeiros e publicado num artigo de 2018. A coleta de dados ocorreu entre 1989 e 2014 na Academia Militar das Agulhas Negras (Aman) e na Escola Naval. O trabalho apresenta, inicialmente a notável a prevalência de estudantes da região sudeste sobre as outras, gerando uma sub-representação de determinadas partes do país – como o Nordeste, o Centro-Oeste e o Norte.

Gráfico 1 – Naturalidade dos alunos da Escola Naval e da Aman, segundo as grandes regiões do Brasil (média 2012-2014)

Fonte: Castro & Medeiros, 2018.

Um dos aspectos relevantes em termos de princípios fundamentais para cadetes diz respeito ao perfil majoritariamente cristão: mais de 80% é católico, protestante ou espírita. Vale ressaltar, ainda, que as escolas militares possuem uma porcentagem de protestantes e de espíritas consideravelmente maior quando comparada às porcentagens nacionais coletadas pelo Censo do IBGE 2010. O universo de referência pentecostal, neopentecostal e espírita, dessa forma, informa uma parcela considerável de cadetes.

Gráfico 2 – Religião de estudantes da Aman e da Escola Naval (Média 2012-2014)

Fonte: Castro & Medeiros, 2018.

No que tange à renda, o senso comum costuma assumir que as Forças Armadas são constituídas por membros de famílias mais pobres que desejam ascender socialmente. De acordo com a pesquisa, contudo, estudantes da AMAN provém dos extratos médios da população. No caso brasileiro, a renda familiar de 73% das pessoas corresponde a até 5 salários mínimos. No caso da Aman, por exemplo, esse número cai para 32%, de modo que a maior parte dos estudantes (43%) tem renda familiar entre 5 a 10 salários mínimos.

 Gráfico 3 – Renda familiar mensal por faixa dos alunos da Aman (média 2012 a 2014)

Fonte: Castro & Medeiros, 2018.

 O que pensam?

Uma outra pesquisa encomendada pelo próprio Ministério da Justiça coletou as impressões dos oficiais do Exército Brasileiro sobre uma série de questões. O trabalho, realizado em 2013 e conduzido por Maria Alice Rezende de Carvalho, Eduardo Raposo e Sarita Schaffel, assumiu a forma de questionário enviado a 20.435 oficiais da ativa e respondido por 2.423 entrevistados.

A pesquisa perguntou quais os fatores que, na visão dos entrevistados, comprometeriam ou fragilizariam a democracia. As respostas alegaram, sobretudo, o "baixo nível educacional da população" (49%), e a "corrupção" (39%) como responsáveis pela deturpação democrática.

Outro enunciado perguntava quais eram instituições menos influentes ou destituídas de influência na vida republicana brasileira. Nas respostas, em primeiro lugar, apareceram os "militares" (97,1%), seguidos por "cientistas e intelectuais" (94,9%) e, dentre as instituições tidas como as mais influentes no Brasil, despontaram a "televisão" (89,6%), os "bancos" (85,5%) e o "Congresso Nacional" (82,1%). Em seguida, respondentes deveriam assinalar quais instituições deveriam aumentar sua influência sobre a sociedade brasileira, as respostas destacaram "cientistas e intelectuais" (96,4%) e, em seguida, os "militares" (80%).

De 2013, ano da pesquisa, para 2020, podemos inferir algumas continuidades e outras mudanças a respeito dessas respostas. No imaginário dos próprios militares, diante de riscos democráticos no Brasil – seja por conta do equivocado voto da população e da corrupção –, caberia o aumento de sua própria influência sobre o Estado. Mas como esse conjunto de sujeitos entende as relações no mundo democrático?

Como simbolizam?    

Desde o momento em que um cadete ingressa na Academia Militar das Agulhas Negras (Aman), ele passa a ser submetido a uma bateria de rituais expiatórios, treinamentos físicos e a repetição de atividades cuja função parece ser a incorporação de princípios militares, conforme relatou o antropólogo Celso Castro no livro "O espírito militar" de 1990. Tais mecanismos cumpririam uma dupla finalidade: a) estimulariam a desistência, garantindo que os perseverantes incorporassem a noção de que têm uma "vocação natural" para a vida militar; b) forjariam a construção de uma nova pessoa, cuja nova identidade passaria a ser reconhecida a partir da ideia do pertencimento a uma "família militar".

O elemento básico da construção da identidade do militar é, então, sua diferenciação simbólica em relação ao "mundo civil" e o pertencimento a um "mundo militar", como explica Castro. Esse aspecto resulta na produção da ideia de uma "família militar". Enquanto no universo "civil" a família é entendida como um universo exterior à profissão, na vida militar, a família é vista como elemento interior à própria instituição, como descreve a antropóloga Cristina Rodrigues Silva em texto de 2013. Essa noção de "Família Militar" possui diversos significado: refere-se ora ao contingente da instituição (os profissionais); ora alude à família no seu sentido "privado" (cônjuge e filhos/as); e também diz respeito a esses dois aspectos juntos (a grande "Família Militar" – militares e seus dependentes). A família passa a ser uma entidade fundamental a ser protegida e preservada de eventuais inimigos.

O outro como inimigo

Por sinal, no sistema de códigos próprios das Forças Armadas e no horizonte da atividade-fim dos militares, a guerra se apresenta como o princípio norteador das práticas e imaginários, conforme explica o antropólogo Piero Leirner em texto de 2008. Dessa forma, na ausência de inimigos externos a colocar em risco o Estado Nacional, resta identificar outros inimigos.

Durante a ditadura militar, essa figura foi preenchida pelo imaginário do "inimigo interno" – o comunismo, os antipatriotas e assim por diante. No contexto contemporâneo, parte das forças armadas parece oscilar nessa identificação – ora são um partido, ora uma instituição do próprio Estado, ora um conjunto de profissionais… É possível inferir que esse modelo de raciocínio oriente as falas e práticas do próprio Presidente da República, dada a sua formação militar.

Para essa perspectiva, havendo um outro – alguém que não faz parte da "família" – ele é, foi, ou pode vir a ser, um inimigo. Esse procedimento, defende Piero Leirner, gera uma lógica bastante singular no modo de conduta militar pois, de um lado, os exércitos se "fecham" para aquilo que entendem como "sociedade civil" e, de outro, eles se "abrem" para as relações de inimizade. Assim, fazer uma guerra se transforma, paradoxalmente, numa forma de estabelecer uma relação.

Talvez por isso seja possível notar a sintonia entre alguns segmentos militares e o governo de Jair Bolsonaro. O Chefe do Executivo cria continuamente contendas e conflitos capazes de instaurar sempre uma guerra contra inimigos – Congresso, Supremo Tribunal Federal, jornalistas, cientistas, ex-aliados e assim por diante. A sua relação com o Estado e com o povo segue essa lógica. É um governo que criar situações para ser interpelado, contrariado, guerreado e, assim, para existir. Curiosamente, em paralelo, o governo produz uma "família" que deve ser protegida de um lado da trincheira – são pessoas que precisar ser fiéis e alinhadas aos princípios morais orientadores sob o risco de se tornarem traidores/as.

Em um cenário no qual há uma iminente guerra e em que todos podem ser inimigos, as formas de aliança se dão pelo "matrimônio" ou pelo absoluto comprometimento. Talvez por isso, o atual presidente empregue regularmente a metáfora do casamento para falar de seus ministros e aliados. Eles só podem ser da "família" se casados. Outras formas de aliança – como a parceria, a política, o contrato profissional – não cumpririam essa função. Como resultado, qualquer divergência (política, ética, de opinião) pode recair rapidamente na lógica da traição de modo que o antigo aliado logo se torna inimigo.

Diante desse registro de compreensão da democracia e das relações sociais, é importante discutir as estratégias que queremos assumir para lidar com nossos conflitos. Talvez a imagem de uma guerra contínua seja insatisfatória para as pessoas que não são formadas sob o signo militar. Cabe pensar outros modelos de compreensão do outro e de relação com esse outro. Um outro que não precisa ser meu inimigo, mas pode ser encarado como um/uma cidadão/cidadã com muitos deveres e diversos direitos.

 

Agradeço aos comentários e críticas de Vitor Hix. Ele chamou a atenção para uma imprecisão conceitual no primeiro parágrafo ao citar o comandante da Força Nacional de Segurança, coronel Agnaldo de Oliveira, junto ao general Walter Braga Netto e ao general Augusto Heleno. Além disso, ele propôs  alterações para evidenciar a diversidade de posições dentro das Forças Armadas. O texto foi ligeiramente alterado em 10.03.2020 às 11h37.

Sobre o Autor

Bernardo Fonseca Machado é doutor em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo. Desde 2018, trabalha como professor na Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás. Também foi Visiting Student Research Collaborator na Universidade de Princeton, nos Estados Unidos (2015-2016) e, em 2016, co-escreveu o livro Diferentes, não desiguais: a questão de gênero na escola pelo selo Reviravolta da Companhia das Letras. Desenvolve pesquisas acadêmicas como membro dos grupos Etnohistória e do NUMAS (Núcleo dos Marcadores Sociais da Diferença), ambos da USP.

Sobre o Blog

Cultura, relações sociais, diversidade, diferença e desigualdade são temas centrais do blog. A proposta é discutir noções e práticas contemporâneas que afetam nossas percepções de mundo utilizando a metodologia da antropologia.