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Bernardo Machado

'Preservação sexual' de Damares Alves se baseia no mito do amor romântico

Bernardo Machado

09/01/2020 14h52

Tânia Rego/Agência Brasil + Reprodução/Facebook/Eu Escolhi Esperar

Tornou-se público o novo estudo desenvolvido pelo Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos para proteção da juventude, baseado em abstinência sexual. Se adotado, o programa visa estimular jovens a não fazer sexo ou a adiar o início da vida sexual, com o objetivo de prevenir a gravidez e a transmissão de infecções sexualmente transmissíveis (ISTs).

Desde o anúncio, no início de janeiro de 2020, diversas análises manifestaram-se sobre o assunto e indicaram a ausência de bases científicas para o desenvolvimento de uma política pública nessa direção, como Thiago Amparo, Cecilia Machado, Débora Diniz e Giselle Carino. Houve também uma reação: Marlon Derosa e a própria ministra Damares Alves contra-argumentaram, defendendo existir um lastro empírico para a política.

Neste texto, não me atenho ao suposto aspecto científico da proposta. Quero antes discutir quais argumentos são mobilizados pela defesa da abstinência. Menos uma retórica sem cabeça, ela se ancora em expectativas de amor romântico, referenciais terapêuticos e paradigmas cristãos, como explica a antropóloga Luiza Terassi Hortelan em artigo publicado na revista Debates NER, em 2019. A pesquisadora está desenvolvendo um mestrado na Unicamp justamente sobre o movimento "Eu Escolhi Esperar", cujos princípios orientam a proposta de Damares Alves.

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Em 2011, o pastor da igreja capixaba Vitória em Cristo, Nelson Neto Júnior, criou o movimento Eu Decidi Esperar com a intenção de "promover a pureza sexual e a saúde emocional" entre jovens. De lá para cá, a campanha cresceu. Atualmente, sua página no Facebook conta com mais de 3 milhões de seguidores. O movimento se caracteriza por ser interdenominacional – isto é, uma organização que não se vincula a uma igreja (ou denominação) específica.

O movimento surgiu após a percepção de que uma parcela de jovens se afastava das igrejas por frustrações amorosas: seja por decepções com parceiros da igreja, seja pela busca de parceiros "de fora". Assim, os membros da campanha passaram a considerar fundamental "falar abertamente sobre sexo nas igrejas", a fim de orientar a juventude.

Segundo o idealizador, seus seminários são destinados a "todos os que querem ser felizes no amor". O entusiasta costuma dizer que não se trata de "uma campanha pela virgindade, um movimento de virgens, nós somos um movimento pela saúde emocional". Nota-se como a felicidade amorosa seria a recompensa para quem escolhe e suporta esperar.

Nessa economia emocional, o amor e a paixão são entendidos como sentimentos perigosos que podem gerar sofrimento. Para evitar a dor e assegurar a felicidade, o caminho mais eficaz seria "esperar o tempo de Deus". Na lógica imperam os princípios do "namoro cristão": abstinência sexual, heterossexualidade, monogamia, afinidade religiosa dos parceiros e casamento como propósito final. Por sinal, Nelson Neto Júnior e fiéis reiteradamente explicam: "crente não namora para se divertir, crente namora para casar".

Contudo, o projeto não se restringe a referências cristãs. Segundo o Eu Escolhi Esperar, a abstinência não é somente uma forma de evitar o pecado, mas também a manifestação de uma "inteligência emocional". A abstinência deixaria de ser vista como uma norma imposta e passaria a ser entendida como uma forma de gestão da própria subjetividade e da individualidade. Ela garantiria um "controle emocional" sobre a própria vida ou uma maneira de assegurar controle moral sobre si e sobre os outros.

A espera é entendida como uma escolha racional, feita a partir de um cálculo que avalia riscos, consequências, custos e benefícios. No texto citado, Hortelan explica como o movimento está em diálogo com referenciais da autoajuda, com a terapia emocional e com a defesa de amor romântico, isto é, com argumentos que não têm origem religiosa, mas sim secular. As igrejas pentecostais e neopentecostais estão recorrendo a referenciais não-religiosos para produzir um discurso com um alcance mais amplo.

Com a retórica da abstinência, o Ministério alude a um "caráter terapêutico", no qual o sexo e as carícias podem dar lugar a uma "racionalidade sadia". Regula-se a vida íntima aproximando a sexualidade da irracionalidade: evita-se a gravidez e as ISTs justamente por isso ser (supostamente) mais "racional". E, como resultado, a santidade sexual seria uma forma de ter uma relação "sadia", cujo vínculo não se define por uma "dependência emocional", mas pela autorrealização individual. O que a proposta do movimento Eu Escolhi Esperar prega – e o Ministério parece endossar – é que o amor e a saúde só se tornariam uma escolha possível graças à pureza sexual.

Ao meu ver, esse é um argumento com grande capacidade de difusão, uma vez que articula pautas cristãs, argumentos sintonizados com uma terapêutica secular e uma lógica de preservação da saúde individual. Dessa forma, é importante realizar, de um lado, uma crítica à eficácia dessa política, mas também entender a força de sua retórica e capilaridade. A ministra Damares Alves é eficiente em produzir uma comunicação com o público evangélico e está disputando – de forma bastante ativa – os significados sociais de temas como sexualidade, gênero e direitos humanos. Qualificar suas falas políticas como "tacanhas" ou "insanas" é problemático do ponto de vista estratégico e também democrático.

Concordo, assim, com o argumento de Anna Virginia Balloussier: é necessário não ridicularizar ou desmerecer os argumentos das pessoas crentes e sim atinar para suas referências. Os significados do sexo e da sexualidade estão em disputa e os argumentos mobilizados pelo campo conservador não são simples ou fáceis de contornar.

 

Cabe mencionar que a pesquisadora Luiza Terrassi Hortelan não foi consultada para o desenvolvimento deste texto.

Sobre o Autor

Bernardo Fonseca Machado é doutor em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo. Desde 2018, trabalha como professor na Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás. Também foi Visiting Student Research Collaborator na Universidade de Princeton, nos Estados Unidos (2015-2016) e, em 2016, co-escreveu o livro Diferentes, não desiguais: a questão de gênero na escola pelo selo Reviravolta da Companhia das Letras. Desenvolve pesquisas acadêmicas como membro dos grupos Etnohistória e do NUMAS (Núcleo dos Marcadores Sociais da Diferença), ambos da USP.

Sobre o Blog

Cultura, relações sociais, diversidade, diferença e desigualdade são temas centrais do blog. A proposta é discutir noções e práticas contemporâneas que afetam nossas percepções de mundo utilizando a metodologia da antropologia.