O que fazem as ciências humanas
Está em pauta a relevância das ciências humanas no cenário educacional e econômico no Brasil contemporâneo. Ao meu ver, para avaliar a importância de uma política pública é preciso, antes, saber o que ela faz e quais suas implicações. Munida dessas informações, a coletividade pode debater como alocar investimento, tempo e atenção. Por isso, convido quem lê para um breve apanhado de algumas das ações realizadas pela área das ciências humanas. Três dimensões merecem discussão: 1) a própria separação histórica entre as disciplinas científicas; 2) as contribuições que as ciências humanas oferecem; 3) e os efeitos dos discursos que reiteram a distância entre os saberes
1– Antes de mais nada considero necessário dizer que toda a ciência é humana. Embora os objetos e as metodologias adotadas pelas diferentes áreas sejam diferentes, o conhecimento é produzido por humanos e atende a fins e a interesses de pessoas. Não podemos esquecer que a filosofia é a origem das outras áreas, dela vem as primeiras sistematizações da reflexão e as propostas de ação no mundo no que chamamos de ocidente. Por muito tempo, não havia uma grande divisão dos saberes. Na renascença, por exemplo, o conhecimento era entendido como múltiplo e holístico – como no caso de Leonardo da Vinci, um exímio pensador que tratava de filosofia, anatomia, arte e engenharia. São dele obras como o famoso e enigmático sorriso de Mona Lisa e as primeiras investigações para a aviação.
Em meados do século XIX, houve um debate fundamental que mudou os rumos do conhecimento. Algumas pessoas defendiam que as instituições de ensino deveriam focar na preparação de profissionais especializados – lembremos que o grau de instrução no período era baixo –, e só assim seria garantida a produtividade para os novos mercados e as cidades em crescimento com a revolução industrial. Outros alertavam para os perigos da especialização exacerbada; para eles, o ensino não deveria ser pulverizado e separado em definitivo. Conforme defendiam, pairava um risco nessa proposta, pois ela abandonava o saber em favor de resultados práticos imediatos e desconsiderava suas consequências éticas e morais. Este grupo temia que professores ignorassem os campos dos outros – suas pesquisas e seus avanços. O primeiro conjunto de ideias se fez hegemônico já nessa época e causou uma separação – traumática – para o desenvolvimento das ciências. Como resultado, ocorreu um processo de emancipação das esferas de conhecimento e de alocação de recursos para eles. Importa reter que essa divisão – hoje assumida como "natural" ou "evidente" – tem uma história razoavelmente recente e efeitos que nos dificultam estabelecer relações entre os saberes.
Nos últimos anos, por sinal, as universidades, as escolas e os centros de pesquisa têm feito um esforço monumental para aproximar as diversas áreas científicas. Quem trabalha com educação têm concordado que o saber se dá com a troca e a partilha das dimensões críticas acumuladas por todas as disciplinas.
2 – Em segundo lugar, é importante que se explicite algumas das contribuições que as ciências humanas oferecem. Vou mencionar rapidamente três grupos: a) as colaborações da vida prática, relacionadas ao dia-a-dia da população via políticas públicas; b) os diálogos travados com outras áreas do conhecimento; e c) os conceitos e abordagens que as disciplinas das humanas elaboram.
a – Todos os anos, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) levanta números referentes a taxas de analfabetismo, de saneamento básico, renda média domiciliar, classificação racial das pessoas e muitos outros dados. Para tratar desse material, é preciso um conjunto intrincado de metodologias de áreas como geografia, sociologia, antropologia, estatística e matemática. As perguntas são formuladas segundo procedimentos que levam em conta a ordem das questões, a quantidade de informações necessárias, a possibilidade de burla de quem entrevista e assim por diante. Sem o IBGE, o país não consegue estabelecer políticas públicas adequadas para a saúde, a educação, o emprego e a arte do país – para ficarmos em poucos exemplos.
b – As ciências humanas ainda podem oferecer colaborações específicas para as outras áreas do conhecimento. Na medicina, por exemplo, a morte está presente no dia-a-dia hospitalar e questões éticas e morais são determinantes quando se trata dos cuidados paliativos para manter (ou não) a vida de um paciente. Sem um debate filosófico aprofundado sobre o assunto, profissionais podem recorrer ao humor ou ainda a um distanciamento cruel. Como é o caso do termo jocoso "mulambo" utilizado em algumas ocasiões em referência a pacientes de nível socioeconômico baixo e estado de depauperação física. Por isso, a relevância da disciplina filosofia nas instituições de ensino para preparar profissionais que sejam respeitosos e éticos.
Na biologia, perguntas originadas das ciências humanas foram importantes para discutir as narrativas que tratavam da fecundação. Inicialmente, acreditava-se que o óvulo era um mero invólucro "passivo" para o desenvolvimento do "ativo" espermatozoide (que conteria toda a carga genética do futuro bebê). Ao longo do tempo, pesquisas dedicadas à reprodução humana passaram a questionar as ideias culturais que assumiam ser os óvulos "passivos" e os espermatozoides "ativos". Foram as formulações originadas nas ciências humanas que colaboraram para questionar os referenciais de gênero que informavam as próprias abordagens feitas até então. Assim, investigações mais recentes da biologia mostraram que os óvulos desempenham papel fundamental para a fecundação dos gametas: e são determinantes para as heranças mitocondrial e epigenética do embrião.
No caso da engenharia, as pontes, os prédios e os automóveis são construídos tendo em mente o uso por outras pessoas. Não existe uma ciência sem o contexto no qual ela será usada. Caso a pessoa formada em engenharia não leve em consideração as dimensões sociais nas quais se está inserida, poderá criar uma ponte que ninguém usa, um edifício que não tende as necessidades ou um automóvel cujo cinto de segurança pode ser perigoso para um conjunto particular de pessoas.
c– Mas as humanas ainda colaboram em um plano mais abstrato. Costumo dizer em sala de aula: "se a engenharia cria pontes para ligar duas margens de um rio, as ciências humanas criam pontes para nomear ideias, relações e novas situações". São novas palavras que antes nos faltavam. A palavra "cultura" é um desses exemplos. No século XIX, Edward Tylor e Franz Boas conferiram-lhe um novo significado; a partir deles, "cultura" passou a nomear as diferenças religiosas, alimentares e de costumes entre grupos sociais os mais diversos. Atualmente, o conceito ganhou as ruas e hoje nos ajuda enquanto sociedade.
3 – Por fim, o discurso que rompe as pontes entre os conhecimentos isola e desnutre nossa imaginação. É fundamental o diálogo entre as áreas: ciência sem troca é feudo, conhecimento sem diálogo é miopia. As ciências exatas sem o compromisso com a ética podem gerar disciplinas como a eugenia e a antropometria – que acreditavam no uso medidas corporais para exterminar pessoas. As ciências humanas sem as ciências exatas também não avançam – precisamos de computadores, dados matemáticos, pontes para transporte, e, sobretudo, novas possibilidades de uma vida mais sustentável e menos doente. Com as trocas de metodologias, abordagens e pesquisas podemos estabelecer novas conexões, traçar inéditos itinerários e criticar problemáticas tradições. A conversa entre as áreas pode ampliar horizontes em direção a um mundo mais consciente e justo.
Para finalizar, se há uma proposta séria de debate a respeito da alocação de recursos e do projeto de nação, será preciso estabelecer fóruns de discussão que considerem as implicações políticas, econômicas e sociais de cada decisão. Caso contrário, embarcamos em um discurso demagógico e limitado que, ao invés de nos levar para caminhos proveitosos, nos coloca em um cenário restritivo, claustrofóbico e árido. O recente corte de gastos das universidades públicas, sem qualquer diálogo ou apresentação de um projeto de trabalho, afeta todas as áreas e coloca em risco nossos avanços enquanto nação.
Gostaria de agradecer as muitas trocas que estabeleço via amizades e na sala de aula com pessoas munidas de múltiplos saberes. Sou grato à Beatriz Accioly, Bianca Chizzolini, Denys Yamamoto, Fernando Rossini, Julia Goyatá, Pedro Piffer e Renata Mourão pelas colaborações para a escrita deste texto. Preciso também mencionar estudantes da Universidade Federal de Goiás. Sou professor substituto de antropologia e uma das minhas atribuições consiste em dar aulas para cursos da área de saúde, da comunicação e das ciências sociais. Com elas e eles aprendi muitíssimo. Construímos, em conjunto, um ambiente para o diálogo, o respeito e o debate. Enquanto eu apresentava textos de antropologia, história, sociologia e filosofia, elas/eles me instigavam com perguntas a respeito de nutrição, enfermagem, biologia, jornalismo, relações públicas, museologia, políticas públicas e afins. Ali, nesse espaço, nos esforçamos para criar um terreno fértil para o conhecimento participativo e democrático.
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