80 tiros que colonizaram o futuro
O trajeto para um chá de bebê foi interrompido pelo acionar repetido dos gatilhos, 80 vezes. O guarda-chuva ficou manchado de sangue após 2 tiros de fuzil acertarem seu dono – um trabalhador que aguardava a esposa e os filhos subirem o morro. E a promessa de comemoração juvenil do novo salário não se realizou, interrompida por uma saraivada de 50 balas. Nesses três casos – há muitos outros – os disparos eram "advertência" e as causas uma "confusão".
Quero chamar atenção justamente para esses dois aspectos: a "confusão" que gera uma "advertência". Aí ocorre uma associação direta entre alguns corpos e seus comportamentos: homens negros seriam potencialmente perigosos, afinal, teriam o "perfil" para atividades ilícitas. Por conta disso, seria possível, com as armas, antecipar qualquer averiguação. Esse procedimento, extremamente problemático e cruel, não é, porém, novo.
Ainda no século XIX, uma série de teorias – supostamente científicas – procuravam explicar as diferenças sociais com base em argumentos raciais. Por exemplo, a disciplina frenologia defendia que, uma vez feita a medição dos crânios humanos seria possível identificar o comportamento, o caráter, a personalidade e o grau de periculosidade das pessoas. Alguns cérebros, os oriundos de pessoas brancas, seriam maiores e melhores quando comparados àqueles vindos de pessoas negras. Curiosamente esses pesquisadores não sabiam explicar quando o contrário ocorria. Preferiam o silêncio e a negação para não descaracterizarem suas hipóteses.
Nessa mesma época, surgiu ainda outra corrente, dessa vez ligada ao mundo jurídico, cujo propósito era reconhecer o "criminoso" por sua anatomia: o tamanho de seu rosto e a distância de seus membros eram indícios do tipo de ilicitude a ser cometida. Aqui, os corpos negros já despontavam com alto potencial de risco. É preocupante notar como, nessas teorias, as diferenças humanas – físicas e sociais – seriam um produto direto da natureza. Autores traçavam paralelos entre os traços corporais e os comportamentos morais das pessoas e derivavam o temperamento de um indivíduo de sua origem racial. A eugenia, por consequência, se tornou uma prática política que previa a própria eliminação das raças tidas como "inferiores" e "perigosas" em prol do enaltecimento dos "tipos puros" e brancos.
Tais avaliações justificavam projetos imperialistas na virada do século XIX para o XX. Segundo essas previsões, grupos de interesse na Europa e nas Américas defendiam ser necessário conquistar territórios, fechar fronteiras, purificar raças e exterminar pessoas negras. O neocolonialismo definia o que os sujeitos, antes escravizados, poderiam falar, onde estavam autorizados a transitar e como deveriam se portar no espaço público. Qualquer postura incompatível com o previsto poderia levar a violentas punições. O projeto de poder invadiu muito mais do que as terras: atacou os modos de vida, as ideias, as memórias e os sonhos de futuro dessa população.
Embora essas teorias sejam distantes no tempo, alguns procedimentos contemporâneos se assemelham a elas. Não mais como uma máscara científica, mas sob um senso comum difuso que sugere existir um "perfil físico do criminoso". Talvez por isso, a juíza de Campinas (SP) tenha considerado relevante ressalvar quando condenou um réu acusado de latrocínio por não ter "estereótipo padrão de bandido, possuir pele, olhos e cabelos claros, não estando sujeito a ser facilmente confundido". Quem sabe por esse exato motivo, os corpos negros do músico Evaldo do Santos Rosa, do segurança Rodrigo Alexandre e dos cinco jovens trabalhadores – Robert de Souza Penha, Wesley Castro Rodrigues, Cleiton Corrêa de Souza e Carlos Eduardo da Silva de Souza – tenham causado "confusão". Seus corpos teriam "falado" antes de suas ações e trajetórias.
Quando nós assumimos existirem pessoas com "cara de bom moço" ou "cara de criminoso", estamos associando fenótipos a comportamentos e temperamentos. Nada mais injusto, cruel e impreciso. A cor da pele, a textura do cabelo e o formato do nariz são aspectos físicos que ganham significados socias, mas não determinam as escolhas das pessoas. Trata-se, por isso, de uma prática racista e perversa.
Mas há ainda uma última dimensão que considero pertinente sinalizar. Somos uma sociedade ansiosa. Desenvolvemos uma série de técnicas complexas e intricadas de antecipar do futuro: são modelos de previsão climática, algoritmos para avaliação de crescimento econômico, estatísticas para estimativa populacional… Queremos tornar o futuro palpável e compreensível. Em que isso se relaciona com essa associação singular entre corpos e comportamentos? Oras, parece que queremos antecipar o comportamento de alguém pelo tom de pele e pelos traços físicos. Como se o medo do possível crime justificasse a morte de alguns corpos.
Os tiros de "advertência", baseados em uma associação racial, agem como uma política que, tal como no neocolonialismo, extermina a vida e interrompe a esperança de alguns. Os gatilhos atualizam, nos dias de hoje, algumas práticas tão comuns de nossa história: a invasão das vidas, a conquista territorial e o extermínio do futuro. As famílias dos cidadãos mortos foram atravessadas por um zunido que não terá mais fim. Essas políticas, antes e agora, antecipam o que esses jovens homens negros poderiam ser ou não ser. Em nome de um futuro "purificado", colonizou-se seus destinos: enterrou-se seus corpos, seus sonhos e suas potencialidades. Ao fim, não podemos silenciar e tratar como "incidente" o que é sistêmico, violento e racista.
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