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Bernardo Machado

Afinal, como o Brasil acolhe refugiados LGBTQIA+?

Bernardo Machado

28/06/2020 04h00

Máscaras pintadas com bandeiras do orgulho LGBTQIA+ e de diversos países. Fonte: African Human Rithts Coalition

"Ser refugiado e ser gay não é fácil para ninguém", desabafou o venezuelano Elvis Messias, em entrevista para a artista Pabllo Vittar em 24 de junho. O jovem de 24 anos é uma das muitas pessoas LGBTQIA+ que saem de seus países com o objetivo de encontrar um ambiente mais acolhedor. No Brasil, ele precisou comer restos de comida e sofreu violência física e sexual enquanto procurava espaços para uma nova vida.

Quando pensamos sobre pessoas refugiadas, poucas vezes consideramos a sexualidade e identidade de gênero como motivos para tal jornada. Segundo dados da Agência da ONU para Refugiados (ACNUR), e do Comitê Nacional de Refugiados (Conare), entre 2010 e 2018, o Brasil recebeu 369 solicitações de refúgio por motivo de fundado temor de perseguição relacionado à orientação sexual e/ou à identidade de gênero (OSIG).

No mês de celebração do orgulho LGBTQIA+ e num contexto de crítica sobre as estruturas sociais que constituem o Brasil – como o racismo –, as experiências de pessoas que procuram refúgio por OSIG contribuem para aprofundar o debate e nos sensibilizar.

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Quem são?

"O que a gente chama de 'LGBTQI' envolve um conjunto muito amplo de pessoas", ressalta a professora de antropologia Isadora Lins França da Unicamp. São homens, mulheres, cis e trans, de diferentes lugares de origem. Os dados levantados pelo ACNUR e pelo Conare revelam um grupo bastante diverso de solicitantes.

No caso da orientação sexual, 65% se autodeclararam gays, 13% não informaram, 10% são lésbicas, 7,5% são heterossexuais e 3%, bissexuais
*** Nem todas as pessoas que solicitam refúgio por motivos relacionados à OSIG se reconhecem enquanto LGBTIQA+. Os casos nos quais não foi possível obter informações sobre a auto-identificação das pessoas solicitantes de refúgio estão indicadas como "sem informação".
Fonte: ACNUR, Conare (2018)

Em comum, contudo, notamos os relatos de temor e de violência tanto nos territórios de origem quanto no deslocamento e na própria nova morada. "O que me motivou a sair de Moçambique foi precisamente a discriminação, o fato de não se falar da homossexualidade", conta Lara Lopes, refugiada moçambicana no Brasil. "A partir do momento em que as pessoas começaram a perceber que eu não tinha os gostos considerados normais, de uma mulher gostar de homem, as agressões começaram – as físicas, verbais e psicológicas." Segundo Lopes, a primeira agressão psicológica se materializou no abandono do pai, incomodado com a sexualidade da filha, sugeriu que seu "mau comportamento" derivaria do consumo de drogas.

Daniel Messias, o jovem venezuelano entrevistado por Pabllo Vittar, conta sobre o receio de ser espancado nas ruas da cidade em que morava. "O medo da violência sexual ao viver na rua foi sentido por refugiadas venezuelanas com quem conversei. Pessoas que tiveram de viver por meses numa praça em Boa Vista (RR)", ressalta a professora Isadora Lins França.

No que tange à identidade de gênero, 87% são homens cis, 12,5% mulheres cis e 0,5% mulheres trans. Fonte: Acnur e Conare (2018)

O Brasil não é, necessariamente, o destino escolhido por quem solicita refúgio, "é muito frequente o país ser a única escolha possível diante do fechamento de fronteiras em outros países como Canadá ou Estados Unidos", explica a antropóloga. De local de passagem, o território nacional se transforma em local de permanência.

No caso de Lara Lopes, contudo, o país se tornou uma possibilidade ao ver um casal homoafetivo na televisão. "O que motivou a sair foi ao assistir uma novela da Globo chamada 'Senhora do Destino', em que vi um casal de lésbicas. Comecei a entender que eu não era a única pessoa daquele jeito, não era a única pessoa com aqueles sentimentos, não era a única pessoa que tinha desejo por mulheres."

Em termos etários, 51% tinham entre 18 e 29 anos, 19% entre 30 e 29 anos, 7% entre 40 e 49 anos, 1,6% entre 50 e 59 anos e 0,8% entre 15 e 17 anos. Fonte: ACNUR e Conare (2018)

Embora exista um número oficial de solicitações por motivo de orientação sexual e/ou identidade de gênero, ele não corresponde exatamente ao número de solicitantes de refugio LGBTIA+ no Brasil. Isso porque muitas pessoas decidem omitir essa informação e mencionam outras motivações para o pedido de refúgio, conforme Vitor Lopes Andrade, antropólogo da Universidade de Sussex, na Inglaterra –  exatamente por que impera a apreensão sobre as reações da burocracia frente à diversidade.

Burocracias e obstáculos

Dois critérios precisam estar contemplados para que uma pessoa possa obter o estatuto legal de refugiado/a: a credibilidade e o "fundado temor de perseguição".

Em primeiro lugar é preciso "provar" ser lésbica, gay, bissexual, transexual… As dificuldades começam nesse ponto, isso porque, ao longo de sua trajetória, as pessoas podem se casar com pessoas do sexo oposto, tendo, inclusive, filhos/as. Uma vez no país de solicitação do refúgio, tal aspecto de sua trajetória passa a ser usado como informação de descrédito, isto é, as autoridades sugerem que LGBTQIA+ "de verdade" não teriam se casado ou tido filhos/as.

Em seguida, é necessário evidenciar que o Estado ou mesmo agentes privados perseguem sujeitos por sua sexualidade e/ou identidade de gênero. "Em cerca de 70 países, as relações sexuais consentidas entre adultos/as do mesmo sexo são proibidas", salienta Andrade, em artigo de 2020. Essas leis reguladoras da vida sexual derivam, em sua grande maioria, do período colonial, e foram instituídas pelas metrópoles (como Portugal, França e Reino Unido) em diversas colônias. Há também casos em que a sociedade de origem e até a família perseguem o sujeito por sua sexualidade ou identidade de gênero, o que cria uma dificuldade para comprovar a perseguição e justificar a solicitação de refúgio.

A maior parte das solicitações no Brasil (89,7%) foram submetidas por pessoas vindas do continente africano, sobretudo da Nigéria (32,7%). Fonte: ACNUR e Conare (2018)

Os obstáculos não se encerram nesse ponto. Uma vez no país de destino, o processo de reconhecimento depende de autoridades policiais. No Brasil, por exemplo, a solicitação de refúgio deve ser feita na Polícia Federal. "No caso de pessoas que viveram uma experiência de violência em razão do seu gênero e sexualidade, muitas vezes a violação esteve relacionada a agentes do Estado, por isso pode ser muito difícil expor esse aspecto para uma autoridade policial, o que obviamente prejudica o processo todo", explica Isadora Lins França.

Para completar o caldo de desafios, essas pessoas podem carecer de ambientes de suporte. Isso porque nos fluxos migratórios costumam existir duas redes de apoio fundamentais para o deslocamento: a família e os conterrâneos. Ambos grupos ajudam a planejar a saída do país, promovem o trânsito e também contribuem para a chegada no novo destino. "No caso dos refugiados ou solicitantes de refúgio por orientação sexual e/ou identidade de gênero, eles podem estar fugindo da própria família, não só do Estado", pondera Vitor Andrade.

Além disso, os próprios conterrâneos refugiados, quando heterossexuais e cisgêneros, podem continuar a ser lgbtifóbicos ou sexistas. Por esse motivo, homens gays e mulheres lésbicas muitas vezes escondem sua sexualidade nos centros de acolhida, espaços em que encontram conterrâneos e migrantes de outros países. Já as pessoas trans muitas vezes não conseguem esconder sua identidade, justamente porque se apresentam com uma identidade de gênero, mas em seus documentos consta um nome com outra figuração sexual. "Conheci uma pessoa trans que preferia ficar num centro de acolhida para brasileiros e não para imigrantes, pela discriminação que sofria. Como a mudança não foi feita, ela abandonou o local", conta Andrade.

Para lidar com a ausência de acolhimento, algumas organizações da sociedade civil passaram a articular redes de apoio e de discussão, com o objetivo de facilitar a integração, a proteção e a expressão de pessoas LGBTQIA+ que são migrantes, refugiadas e deslocadas. Este é caso da LGBT+Movimento, entidade fundada em 2017 que procura realizar acompanhamento de pessoas, sensibilização social e pesquisas com o fim de traçar caminhos para atuar. Recentemente dois núcleos de pesquisa – o NUMAS (USP) e o PAGU (Unicamp) –  também promoveram um debate rico sobre o tema.

Brasil, um país acolhedor?

Num momento em que o país faz um esforço para denunciar o racismo estrutural, vale também discutir o imaginário de que somos um local de acolhimento pacífico e aberto para migrantes.

"Quando a gente olha historicamente, em alguns momentos, o Brasil de fato incentivou a vinda de estrangeiros. Essas pessoas eram, sobretudo, europeus brancos e asiáticos. Nesse caso, o mito migratório no Brasil está muito mais relacionado aos italianos, alemães, espanhóis e portugueses. Ali, a ideia de um imigrante europeu e branco é vista de uma maneira positiva", analisa Vitor Andrade. "O cenário atual é diferente. A maior parte dos imigrantes que chegam ao Brasil são africanos, haitianos e agora os venezuelanos." Quando o "outro" não é mais o branco europeu, sua presença ganha outros significados e revela aspectos discriminatórios de nossa sociedade.

"Na conversa com refugiados e imigrantes, transparece o não reconhecimento das suas competências profissionais, a desvalorização da contribuição que podem dar, e a violência nos espaços públicos no típico: 'volta para seu país'", comenta Isadora Lins França. "Tudo isso está mediado pela raça: se já é difícil lidar com o preconceito no mercado de trabalho, por exemplo, sendo lésbica, gay ou trans, isso aumenta quando as pessoas são negras ou de um país da África." Lara Lopes conta que, em sua experiência no Brasil, não enfrentou discriminação por ser lésbica, mas sim pelo fato de ser africana e negra.

Muitos/as solicitantes de refúgio se descobrem negros/as quando chegam no Brasil, explica Andrade. Para algumas pessoas, a dimensão racial não configura um aspecto determinante em seus países de origem, ao passo que a sexualidade é o principal motivo de discriminação. Já em terras brasileiras, além da sexualidade, sujeitos encontram práticas racializadoras e racistas. Um homem nigeriano entrevistado por Vitor relatou que as pessoas preferiam ficar de pé a sentar ao seu lado no ônibus.

Fica evidente como pessoas LGBTQIA+ em situação de refúgio desafiam nossas concepções rotineiras sobre território, identidade e nossos mitos de um país acolhedor e aberto à diferença. Nota-se como são corpos atravessados por sexualidade, identidade de gênero, mas também por raça e nacionalidade.

Enquanto perpetuar o "mito de país acolhedor" sem discutirmos com seriedade como recebemos, com equidade e justiça, populações LGBTIA+, negros, africanos e latino-americanos, continuaremos um referencial conveniente que supõe um "acolhimento piedoso", mas que entrega uma prática discriminatória.

Para contribuir

A LGBT+Movimento realiza uma campanha de arrecadação coletiva chamada AFETE-SE, com intuito de garantir uma quarentena mais segura para 40 famílias de migrantes e refugiades LGBTQIA+ com cestas básicas, itens de higiene, frutas e legumes, botijões de gás, transporte, meios de comunicação, auxílio medicamento e aluguel social. Para conhecer mais, basta procurar no Facebook (https://www.facebook.com/lgbtmaismovimento) ou no Instagram @lgbtmaismovimento. Para contribuir na campanha,: https://www.catarse.me/afetese.

A Casa Miga é um espaço de acolhimento para brasileiros, imigrantes e refugiados LGBTQIA+ em Manaus. É um projeto da Associação Manifesta LGBT+ e tem o objetivo de proporcionar acesso a serviços de cidadania e direitos humanos, bem como amparo social e psicológico, jurídico e médico. A Casa Miga também busca desenvolver capacitação profissional para a autonomia dessas pessoas. Nas redes, pode encontrar nos seguintes endereços:@casamigalgbt e @manifestalgbt+

Sobre o Autor

Bernardo Fonseca Machado é doutor em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo. Desde 2018, trabalha como professor na Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás. Também foi Visiting Student Research Collaborator na Universidade de Princeton, nos Estados Unidos (2015-2016) e, em 2016, co-escreveu o livro Diferentes, não desiguais: a questão de gênero na escola pelo selo Reviravolta da Companhia das Letras. Desenvolve pesquisas acadêmicas como membro dos grupos Etnohistória e do NUMAS (Núcleo dos Marcadores Sociais da Diferença), ambos da USP.

Sobre o Blog

Cultura, relações sociais, diversidade, diferença e desigualdade são temas centrais do blog. A proposta é discutir noções e práticas contemporâneas que afetam nossas percepções de mundo utilizando a metodologia da antropologia.