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Bernardo Machado

Religião, ciência e política: as várias “mutações” de um vírus pandêmico

Bernardo Machado

18/04/2020 04h00

Fusão de imagem de microscópio mostra o novo coronavírus em paciente infectado com foto de altar com diversas referências religiosas (National Institutes of Health / AFP)

"As dores humanas podem ter sentido, mesmo quando não têm solução", pontuou o professor João Décio Passos, do programa de pós-graduação de ciência da religião da PUC-SP. Diante dos desafios transbordantes, pessoas católicas, evangélicas, esotéricas e das religiões de matrizes africanas têm mobilizado tanto recursos simbólicos de suas crenças como bússolas para navegar no amplo emaranhado de incertezas quanto se informado por fontes científicas para definir suas ações.

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As singularidades

De um lado, uma parte da classe média urbana escolarizada – não necessariamente adepta de uma igreja em particular – tem apelado para uma noção ampla de "espiritualidade", destaca Rodrigo Toniol, professor de antropologia da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). Há o imaginário de que a quarentena é um momento propício para olhar para si mesmo e suas idiossincrasias. Nesse caso, pondera o antropólogo, o próprio sujeito produziria a relação com o sagrado, descartando qualquer mediador (sacerdotal ou institucional). Abundam as "tecnologias da espiritualidade" – os aplicativos de meditação, de mindfulness, de yoga – imersas num referencial de terapias alternativas.

Por sinal, Toniol recebeu recentemente a informação de que, em um hospital de referência em São Paulo, uma paciente diagnosticada com Covid-19 foi orientada por uma terapeuta a desenhar mandalas como estratégia para cura. Após aderir à proposta, a paciente teria sentido melhoras físicas e aumentado o índice de saturação de oxigênio em seu corpo.

Há de se notar, em paralelo, a emergência de leituras esotéricas sobre a pandemia. Segundo essas narrativas, a espécie humana estaria passando por uma "purificação natural e necessária", constata Passos. As respostas defendem uma lógica de crises predeterminadas, como uma crise sanitária a cada 100 anos.  Nesses casos, a pandemia teria uma origem fora da História (do contexto biológico e social) e adviria de forças externas ou sobrenaturais. A solução dependeria de unções com óleo, colocação de crucifixo nas portas, correntes de oração etc. "A religião teria uma solução ritual (mágica) para a pandemia. Deus é quem estaria no comando, e não as ciências", comenta o professor da PUC.

Desde a virada do milênio, os discursos sobre o apocalipse andavam desaparecidos no vocabulário evangélico, relembra Jacqueline Moraes Teixeira, pesquisadora e professora da USP. Nos anos 1980 e 1990, o fim dos tempos era dado como certo, com abundantes sinais de calamidade: a ausência de carne na mesa, as altas taxa de desemprego, a queda do muro de Berlim. Entretanto, recentemente, período que coincide com a produção da novela "Apocalipse", que foi ao ar na Record entre 2017 e 2018 (e que será reprisada pela mesma emissora durante a quarentena), a narrativa voltou a ganhar fôlego, destaca a antropóloga. Nesse sentido, o Sars-CoV-2 emergiu como um novo sinal do apocalipse.

Para devotos do candomblé ou da umbanda, tal postura não faz sentido, pondera Vagner Gonçalves da Silva, do departamento de antropologia da USP. Isso porque, nessas religiões, as divindades podem trazer a doença com o objetivo de punição e, simultaneamente, de purificação. Isto é, a doença não é entendida como algo somente negativo, afinal, ao adoecer se aprende a cura e se valoriza a saúde. Nesse sentido, o vírus não é entendido na chave do demoníaco, mas como uma oportunidade para pensar no equilíbrio com a natureza, uma forma de valorizar o axé dos lugares e na força do sagrado. Ao contrário das cosmologias cristãs de expiação, no caso das religiões de matrizes africanas, as divindades não são aprisionadas no binômio maniqueísta de bem e mal.

De toda forma, parece haver um elemento comum de partilha no cenário contemporâneo, apesar das diferentes respostas religiosas.

A gramática científica

"Até o século 17 e 18, os agentes biológicos globais que matavam muita gente eram chamados de praga, afinal, o que organizava a experiência era a Igreja e a religião", explicou Rodrigo Toniol. Com as revoluções científicas e a ascensão do Estado como princípios organizadores da vida social, os modelos explicativos se alteraram e fenômenos antes denominados como "pragas" passaram a ser compreendidos como "pandemias".

No debate público recente, termos como "cloroquina", "achatar a curva", "isolamento" e "quarentena" tornaram-se comuns no vocabulário da população brasileira. "Por mais variadas que estejam sendo as experiências e interpretações sobre o que está acontecendo agora, a gramática tornou-se científica-estatal", analisa Toniol.

O papa Francisco, por exemplo, adotou o isolamento social e, em seus discursos, demonstrou estar em sintonia com as orientações dos especialistas e entidades de saúde, conforme explica João Décio Passos. As fundamentações científicas orientaram o pontífice a adotar uma postura inédita: a suspensão das atividades religiosas, inclusive aquelas relacionadas à Semana Santa, essenciais na tradição católica. Ainda nesse sentido, pondera Passos, Francisco "não expressou em nenhum momento qualquer explicação religiosa sobre a origem da doença, bem como ofereceu rituais de cura para a mesma. Suas atitudes respeitaram a distinção entre o que é da ciência e o que é da fé".

No caso de religiões de matrizes africanas, "houve uma transformação muito grande em relação ao que foi a epidemia da Aids no começo dos anos 1980", comenta Vagner Gonçalves. Na época, uma parcela de pais e mães de santo defendia que a doença não iria afetar as pessoas em seu terreiro pela proteção do Orixá Obaluaiê. Décadas depois, a postura, ao menos entre os terreiros nos quais o pesquisador tem contato, mudou: terreiros suspenderam as festividades religiosas em consonância com as orientações da OMS e do Ministério da Saúde.

Mesmo quem deseja negar o conhecimento epidemiológico e as posturas de entidades governamentais parece mobilizar a gramática científica e estatal para vociferar suas convicções, afirma Toniol. A Igreja Universal do Reino de Deus, por exemplo, tem recorrido ao vocabulário científico para defender suas posições, salienta Jacqueline Moraes Teixeira. Logo após o governo estadual paulista decretar a quarentena e impedir as igrejas de várias orientações a realizar cultos com aglomeração de pessoas, Renato Cardoso – genro de Edir Macedo e bispo principal da IURD – fez uma live reclamando a necessidade de procurar outras bases científicas para garantir que, de um lado, o vírus não se espalhasse e, de outro, a produtividade econômica fosse mantida.

Nas redes sociais evangélicas, "há uma disputa acirrada sobre o conhecimento científico", descreve Teixeira. Mesmo o que é fake news se traduz em formato que emula a ciência. Além disso, a antropóloga nota entre fiéis uma tentativa de procurar um conhecimento "puro", "despido de um discurso político". Segundo o diagnóstico dessas pessoas, "a esquerda defenderia o isolamento social, a direita defenderia o fim do isolamento" e, por isso, seria necessário acessar uma ciência pura que estaria despida de qualquer política ou posicionamento.

A política

Apesar dessa vontade, é notável como interesses políticos calculam os passos munidos de referenciais científicos e como o campo religioso municia as ações públicas para as decisões sanitárias.

O papa Francisco tem assumido, por exemplo, um papel de global player, avalia Toniol: "Ele tem produzido uma estética da política ao apresentar o Vaticano vazio e com uma iluminação calculada para que ele caminhasse no meio da chuva. Isso resultou na foto do início do século 21". A imagem, desse modo, fazia uma defesa do isolamento endossado pelo Vaticano.

Decisões científicas também afetam as práticas religiosas. Nos terreiros com os quais mantém contato, Vagner Gonçalves relata o impacto do isolamento nas festividades. Afinal, nessas religiões, o contato é mediado pelo corpo: "quando o Orixá incorpora uma pessoa, ele abraça outras e faz transferência do axé nesse contato corpo a corpo. As 'emanações' do corpo como saliva, suor, sopro são fontes de axé…". Para atender as orientações governamentais e, simultaneamente, manter viva a relação com o sagrado, os terreiros não deixaram de fazer os rituais privadamente. Por exemplo, as oferendas a Obaluaiê – a divindade associada às epidemias – passaram a ser fotografadas e enviadas nas listas dos terreiros. Mesmo assim, o isolamento tem impactado a sobrevivência material das pessoas, "são comunidades, no geral, de poucos recursos financeiros. O sacerdote vive do jogo de búzios, dos ebós (oferendas), dos rituais de limpeza espiritual e tudo isso cessou", relata Gonçalves. Como alternativa, as comunidades têm pedido contribuição de seus filhos para manutenção e sustento das pessoas.

Posições políticas e religiosas também disputam os significados da ciência. Segundo pesquisa do Datafolha, houve uma divisão significativa na base de apoio ao presidente Bolsonaro, sobretudo entre católicos e evangélicos. Jacqueline Moraes Teixeira pondera que, mesmo nos segmentos protestantes no Brasil, notou-se uma divisão entre aqueles que desacreditaram inicialmente o vírus e aqueles que adotaram prontamente o isolamento social – como algumas denominações batistas que, em 2018, apoiaram o então candidato Bolsonaro.

Diante desse impasse, o presidente e líderes evangélicos ligados ao governo procuraram uma estratégia religiosa capaz de fazer frente à orientação científica do isolamento. O jejum emergiu como uma alternativa. Isso porque, afirma Teixeira, no imaginário cristão, o jejum é um momento de sacrifício individual em que se intensifica a relação com Deus. "Ninguém faz jejum em aglomeração, em templo", destaca Teixeira, "Esse jejum foi uma tentativa de trazer para perto do governo essa gama de evangélicos que defendem as políticas de isolamento social". Dessa maneira, o jejum produziria uma nova narrativa, lastreada em uma política teológica, para o governo se conectar com uma base política que se desfazia e acenar para um tipo de isolamento religioso.

Simultaneamente, nas redes de fiéis começaram a circular as imagens dos templos evangélicos com as portas fechadas e as pessoas ajoelhadas do lado de fora. "Isso traz um peso histórico. Essas igrejas quase nunca estão fechadas, desde as 6h da manhã até a madrugada elas ficam abertas", relembra Teixeira. Essa foi uma postura política adotada por igrejas como a IURD para se contrapor ao decreto do governo estadual paulista que impede aglomerações. Na regra, os edifícios poderiam manter as portas abertas para prestar atendimentos individuais, por isso a decisão de trancar as igrejas produziu um efeito simbólico e político. Afinal, templos cerrados sugerem o caos e a proximidade com o apocalipse.

Sob essa imagem, a articulação entre política e religião ganhou novas dimensões, afinal, essa narrativa "consegue colocar a gestão do governo Bolsonaro numa posição que faz sentido para algumas pessoas – embora não seja unânime", comenta Teixeira. "O governo passa a ser lido por segmentos evangélicos como um governo do fim do mundo. Ele não vai ser coerente – não precisa ser coerente –, não vai resolver os problemas, ele não vai tirar as pessoas do seu sofrimento… ele é um governo apocalíptico". Por esse motivo, para alguns segmentos da população, a forma de administração da doença não geraria incômodo ou preocupação, afinal, estaria afinada com essa leitura cosmológica cristã.

Nesse universo de referências intrincadas e emaranhadas, o que se pode inferir é a articulação entre religião, ciência e política. Apesar de imaginarmos essas esferas como campos separados, nota-se, na prática, universos mutuamente constituídos e repletos de interpelações.

Sobre o Autor

Bernardo Fonseca Machado é doutor em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo. Desde 2018, trabalha como professor na Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás. Também foi Visiting Student Research Collaborator na Universidade de Princeton, nos Estados Unidos (2015-2016) e, em 2016, co-escreveu o livro Diferentes, não desiguais: a questão de gênero na escola pelo selo Reviravolta da Companhia das Letras. Desenvolve pesquisas acadêmicas como membro dos grupos Etnohistória e do NUMAS (Núcleo dos Marcadores Sociais da Diferença), ambos da USP.

Sobre o Blog

Cultura, relações sociais, diversidade, diferença e desigualdade são temas centrais do blog. A proposta é discutir noções e práticas contemporâneas que afetam nossas percepções de mundo utilizando a metodologia da antropologia.