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Bernardo Machado

A relação entre religiões cristãs e o Estado brasileiro

Bernardo Machado

21/02/2020 04h00

Desde 2014, o debate público se dedicou a definir o que poderia ser dito ou não nas escolas do país. O projeto Escola Sem Partido e manifestantes contrários à suposta "ideologia de gênero" se empenharam em estipular os conteúdos permitidos e aqueles interditos nas salas de aula. Nesse mesmo período, um outro debate causou, comparativamente, menor estardalhaço: as escolas públicas deveriam ensinar ou não religião?

Em setembro de 2017, o STF decidiu ser constitucional a presença do ensino religioso em escolas públicas no Brasil. Passados quase dois anos e meio após a votação, considero prudente retomar o tema, afinal continua pairando no ar uma certa inquietação sobre qual o teor da relação entre as religiões (sobretudo cristãs) e o Estado brasileiro.

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A história da escola e da religião no Brasil se mistura com a presença exclusiva da Igreja Católica nessa área. Desde o início da formação do ensino público no país, a doutrina católica se fez oficialmente presente nos currículos escolares das escolas. Na época, os próprios professores eram obrigados a prestar juramento de fé católica.

A situação se manteve até as últimas décadas do século 19, quando a relação entre a Igreja Católica e o Estado sofreu mudanças, após a proclamação da República em 1889. A nova Constituição declarou a separação entre a Igreja Católica e o Estado, de modo que este não pôde mais financiar atividades religiosas – como ocorria até então – e o próprio ensino religioso deixou de ser ministrado nas escolas públicas.

Passadas algumas décadas, no início dos anos 1930, tornou-se novamente hegemônico o entendimento de que o ensino religioso seria imprescindível para a formação espiritual, moral e ética do cidadão e do ser humano, conforme explica o pesquisador Gustavo Gilson de Oliveira em artigo sobre o tema. A Liga Eleitoral Católica – uma organização fundada em 1932 e liderada pelo arcebispo D. Sebastião Leme – conseguiu eleger a maioria dos deputados para a Assembleia Nacional Constituinte e atuou por introduzir no texto constitucional a possibilidade de associação entre Estado e entidades religiosas. Como resultado, a Carta de 1934 explicitamente definiu, no artigo 153, a obrigatoriedade do ensino religioso "ministrado de acordo com os princípios da confissão religiosa do aluno manifestada pelos pais ou responsáveis."

Na Constituição de 1946, o princípio se manteve e foi ponto de partida para a elaboração da primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), publicada em 1961, como explicam Luiz Cunha e Vânia Fernandes em texto de 2012. Estava em pauta a discussão sobre quem teria o controle sobre a disciplina "ensino religioso". Restou decidido que caberia à Igreja Católica autorizar a pessoa responsável por ministrar as aulas, independentemente de possuir formação pedagógica. Contudo, o deputado Aurélio Vianna (PSB-AL) apresentou uma emenda que modificava o caráter da legislação: as escolas públicas não poderiam remunerar os professores de ensino religioso e, além disso, professores do quadro docente regular não poderiam ser deslocados para tal atividade durante o horário de trabalho. No acordo final, o ensino religioso nas escolas públicas deveria ser realizado sem ônus para o Estado. Assim, na época, a disputa girava em torno da questão de definir se o ensino de religião deveria ou não ser função do Estado, como contam Paula Montero e Dirceu Giardi em trabalho de 2019.

No auge da ditadura militar, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1971 revogou a restrição presente na LDB anterior. Como resultado, dirigentes católicos passaram a fazer pressão política para o remanejamento de professores do quadro docente das escolas públicas para o ensino religioso, além de exigir a remuneração de seus agentes. Na ocasião, o ensino religioso voltou a ser de caráter confessional e de responsabilidade das igrejas interessadas.

Nos anos 1980, com a abertura democrática, o debate reascendeu. A Igreja Católica estava fortalecida por sua mobilização contra a ditadura e realizou pressão para a permanência do ensino religioso na Constituinte. Após as negociações, a redação do artigo 210 da Carta de 1988 definiu que "o ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas do ensino fundamental". Em paralelo, a nova Carta reconheceu a proteção da diversidade religiosa e dos direitos culturais. Nos anos seguintes, sobretudo na LDB de 1996, não se discutiu mais se o ensino religioso seria ou não oferecido, mas qual seria seu conteúdo e quais as normas para a atuação de docentes. A partir de então, a questão passou a ser: como o Estado deve regular a diversidade no ensino religioso?

Tanto a Constituição Federal quanto a LDB deixaram em aberto as diretrizes de implementação do ensino religioso: seu conteúdo, seu formato, quem ministraria a disciplina… Essa ausência contribuiu para proliferação de legislações distintas em cada estado, como explicam Marcos Carvalho e Horacio Sívori em artigo de 2017.

Em São Paulo, por exemplo, o Conselho Estadual de Educação estipulou que competiria aos professores graduados em ciências sociais, filosofia e história ministrarem as aulas de ensino religioso. O conteúdo ensinaria sobre religião sem excluir nenhum dos credos, sem haver proselitismo, cujo tema central seria a "história das religiões".

Já o Rio de Janeiro optou pelo caráter confessional do ensino religioso nas escolas públicas, conforme a Lei 3.459/2000. Dentro desse paradigma, os professores pertenceriam a uma confissão religiosa, de modo que as autoridades religiosas seriam responsáveis pelo credenciamento dos docentes e pela definição dos conteúdos da educação. O pluralismo religioso ficou subordinado à demanda dos alunos e à oferta de professores por parte do governo estadual. A título de exemplo, em 2004, o estado do Rio de Janeiro abriu um concurso com 500 vagas para professores de ensino religioso divididas em três segmentos, de acordo com a confissão dos candidatos: "católicos", "evangélicos" e "outros credos". Como resultado, foram distribuídas 342 vagas para católicos, 132 vagas para evangélicos e 26 vagas para outros credos.

A situação ganhou novos contornos na última década. Em 2010, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva promulgou, via decreto, um acordo entre a República Federativa do Brasil e o Vaticano, que garantia às instituições católicas direitos especiais em termos políticos, fiscais, trabalhistas e educacionais. Como reação, no mesmo ano, a Procuradora-Geral da República entrou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, questionando especificamente o artigo 11 do Acordo, que entendia como confessional o ensino religioso a ser oferecido.

A ADI 4439 foi distribuída para o ministro Luís Roberto Barroso do STF. Como o tema era espinhoso e repleto de dilemas, o magistrado decidiu convocar uma audiência pública com representantes do Estado e da sociedade civil. Na ocasião, 32 pessoas expuseram suas posições sobre o formato de ensino religioso a ser adotado pelo Estado brasileiro. A Procuradora-Geral da República defendia que a única maneira de compatibilizar o caráter laico do Estado brasileiro com o ensino religioso nas escolas públicas consistiria em adotar um modelo não confessional: o conteúdo deveria expor as doutrinas, as práticas e as histórias das diferentes religiões e das posições não religiosas.

No total, foram 32 pessoas a expor sobre o tema. Destaco duas posições relatadas por Montero e Girardi. A primeira partiu do representante do legislativo evangélico, Manuel Morais, que falou em nome do então presidente da Comissão dos Direitos Humanos e Minorias, o pastor Marco Feliciano (então PODE/SP, ex-PSC e atualmente sem partido). Segundo ele, a escola não faria proselitismo ao oferecer ensino religioso, isso porque, segundo sua lógica, embora ensinando uma fé, a criança não estaria sendo doutrinada, pois ela já teria escolhido sobre sua crença. Além disso, a escola prestaria um "serviço gratuito às famílias" mais pobres, que não teriam condições para pagar escolas privadas religiosas.

Contrariando as expectativas, a maior parte das instituições religiosas posicionou-se a favor da inconstitucionalidade do modelo confessional. Dentre os cinco representantes evangélicos, quatro fizeram falas contra o ensino religioso nas escolas públicas, porque consideravam que o ensino da religião – seus dogmas, doutrinas, ritos e liturgias – não deveria ser ensinado no ambiente escolar, mas sim na família, nas organizações religiosas ou nas escolas confessionais privadas.

A CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), por sua vez, foi uma das poucas entidades religiosas que defendeu a confissão no ensino religioso com grande vigor. Em sua forma de ver, o ensino religioso confessional, controlado pela Igreja Católica, seria uma das formas de garantir os direitos civis como o acesso à educação e da diversidade religiosa.

Ao final da audiência, embora 56% dos oradores tenham preferido a modalidade não confessional (18 de 32), a votação final da matéria pelo STF julgou improcedente a ADI por seis votos a cinco. O colegiado entendeu ser constitucional o ensino religioso de natureza confessional ser lecionado por representantes de uma religião nas escolas públicas.

A votação do Supremo reforçou a visão do ensino religioso como parte integrante da formação básica do cidadão, como explicam Carvalho e Sívori. Como efeito, as religiões (em especial as cristãs) ficaram autorizadas a contratarem seus próprios quadros docentes e produzirem e circularem materiais didáticos, cujos conteúdos não necessitam passar por avaliações do Ministério da Educação – ao contrário de todas as outras disciplinas da grade curricular.

Tais questões devem ser debatidas pelo conjunto social, sobretudo levando em consideração a própria diversidade religiosa do país.

Nesses últimos dois anos e meio, as escolas públicas ofereceram espaço, na disciplina, para outras formas de fé? Crianças que professam religiões de matriz africana aprenderam sobre essas cosmologias? Budistas, ateus e judeus se sentiram representados e contemplados? Mesmo as diversas correntes cristãs receberam atenção? Caso façamos uma avaliação séria nesse sentido, e a resposta a essas perguntas for negativa, o que fazer? Poderemos nomear o tema como tática de uma única "ideologia religiosa"? O assunto é espinhoso e merece grande atenção e comprometimento, sem falsas soluções.

Sobre o Autor

Bernardo Fonseca Machado é doutor em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo. Desde 2018, trabalha como professor na Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás. Também foi Visiting Student Research Collaborator na Universidade de Princeton, nos Estados Unidos (2015-2016) e, em 2016, co-escreveu o livro Diferentes, não desiguais: a questão de gênero na escola pelo selo Reviravolta da Companhia das Letras. Desenvolve pesquisas acadêmicas como membro dos grupos Etnohistória e do NUMAS (Núcleo dos Marcadores Sociais da Diferença), ambos da USP.

Sobre o Blog

Cultura, relações sociais, diversidade, diferença e desigualdade são temas centrais do blog. A proposta é discutir noções e práticas contemporâneas que afetam nossas percepções de mundo utilizando a metodologia da antropologia.