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Bernardo Machado

E se matassem o Papai Noel, como nos anos 1950?

Bernardo Machado

24/12/2019 14h35

O que fazer quando o Papai Noel é enforcado e, em seguida, queimado no átrio de uma Catedral? A execução teve como público centenas de crianças de um orfanato regional e contou com o aval do clero, que condenava o barbudo herege, acusado de "paganizar" a festa de Natal. O comunicado distribuído pelos religiosos dizia:

"Representando todos os lares cristãos da paróquia, dispostos a lutar contra a mentira, 250 crianças, reunidas diante da porta da Catedral de Dijon, queimaram o Papai Noel.

Não se tratou de um espetáculo, e sim de um gesto simbólico. Papai Noel foi sacrificado em holocausto. De fato, a mentira não pode despertar o sentimento religioso na criança e não é, de modo algum, um método educativo – que outros digam e escrevam o que quiserem (…) Para nós, cristãos, o Natal deve continuar a ser o festejo que comemora o nascimento do Salvador".

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A polêmica venceu aquele Natal de 1951 na cidade de Dijon, na França. Na época, o homicídio simbólico do Papai Noel ocupou as manchetes do país e ganhou o registro do antropólogo Claude Lévi-Strauss (de quem retiro as informações no livro "O Suplício do Papai Noel"). A polarização demorou para arrefecer, estampando jornais por dias.

Aos olhos de uma pessoa no Brasil, em 2019, poderíamos ler o fenômeno como uma reação conservadora da Igreja, insensível às mudanças tidas como inofensivas. Mas Lévi-Strauss interpretou o ocorrido de outra forma. Segundo ele, o escândalo do Papai Noel colocou sujeitos em posições inusitadas: a Igreja, tradicionalmente encarada como retrógada, clamava por um espírito crítico às mudanças executadas pelo símbolo pagão (e identificado com os avanços dos Estados Unidos na França do pós-guerra) e os racionalistas liberais defendiam a superstição e os ritos que se formavam. A partir dessa curiosa situação, o antropólogo discorreu sobre os significados do "bom velhinho" e do próprio Natal.

No caso do Brasil, nos últimos anos, os eventos familiares natalinos tornaram-se palco privilegiado da polarização nacional. Não são poucos os relatos – e as piadas – a respeito dos conflitos calorosos testemunhados por nós. Quase todo mundo tem uma anedota ou história trágica própria para contar. Em face dessa crescente verve, surgiram campanhas para "despolarizar" as conversas, estratégias para desviar de certos parentes e até orientações com as informações atualizadas para as discussões quentes do ano.

Curiosamente, o Natal em si não foi (ainda) polarizado, ao contrário do que ocorreu em Dijon de 1951. Embora a ceia e o almoço permaneçam como momentos de tensão, optamos, ao menos por ora, não desqualificar e manter esse espaço para (alguma) comunhão. Desconheço campanhas a favor ou contra o Papai Noel, ou mesmo propostas para abolir o Natal como espaço de comunhão – se existem, ainda não se espalharam no debate público. Há sim críticas ao teor consumista e capitalista da festa, mas, em geral, esses aspectos não comprometeriam a celebração.

Considero importante atinar para essa nossa escolha de preservar o Natal. Quiçá esta é uma escolha social inconsciente, uma forma de preservar alguma reunião. Apesar das "tortas de climão", azedumes nos olhares e trocas poucas polidas entre parentes em espectros políticos e sociais distintos, parece permanecer algum desejo de encontro. Se esse não houvesse, polarizaríamos o Papai Noel e discutiríamos a própria necessidade de celebrar o Natal. Poderíamos exigir o fim desse encontro anual e matar (simbolicamente) o Papai Noel.

Lévi-Strauss defende que o Natal é – para além de uma festa religiosa – a "festa do outro", isto é, a celebração em que presenteamos o outro como forma de atualizar laços e celebrar ritos e mitos (sejam cristãos ou não). Um momento para acreditar, por pouco que seja, numa generosidade irrestrita, numa gentileza desinteressada, num instante sem receio, inveja ou amargura. Essa vontade oferece a oportunidade de relação. A crença na oferta e na dádiva que pode ser preservada. Costumo nutrir um certo grau de ceticismo em minhas análises e avaliações, mas talvez seja um momento para enfatizar não o que perdemos, mas para valorizar o que ainda temos e, assim, refletir: por que nós concordamos com o Natal?

Sobre o Autor

Bernardo Fonseca Machado é doutor em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo. Desde 2018, trabalha como professor na Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás. Também foi Visiting Student Research Collaborator na Universidade de Princeton, nos Estados Unidos (2015-2016) e, em 2016, co-escreveu o livro Diferentes, não desiguais: a questão de gênero na escola pelo selo Reviravolta da Companhia das Letras. Desenvolve pesquisas acadêmicas como membro dos grupos Etnohistória e do NUMAS (Núcleo dos Marcadores Sociais da Diferença), ambos da USP.

Sobre o Blog

Cultura, relações sociais, diversidade, diferença e desigualdade são temas centrais do blog. A proposta é discutir noções e práticas contemporâneas que afetam nossas percepções de mundo utilizando a metodologia da antropologia.