Cultura que vai, cultura que vem: quem liga para cultura no Brasil?
Na última quinta-feira (7), um decreto assinado pelo presidente Jair Bolsonaro promoveu a retirada da Secretaria Especial da Cultura do Ministério da Cidadania e a transferiu para o Ministério do Turismo. Em nota, o ministro Marcelo Álvaro Antônio (denunciado pelo Ministério Público de Minas Gerais por suspeita de envolvimento no esquema de candidaturas de laranjas do PSL) declarou que sua pasta e da Cultura têm pautas "sinérgicas e atividades naturalmente integradas". Segundo definia "A cultura é um dos principais atrativos turísticos do país e é responsável por grande parte da movimentação de visitantes nacionais e internacionais".
Além do deslocamento ter um impacto administrativo, ele também anuncia uma mudança no entendimento da cultura no país. Por sinal, nos últimos 30 anos, o Brasil acumula disputas de significados sobre as políticas culturais, como explica o antropólogo Caio Gonçalves Dias.
Cultura como direito
O Ministério da Cultura foi oficialmente criado em 1985, na presidência de José Sarney. Durante os primeiros anos, a administração patinou com as trocas constantes dos titulares até a chegada de Celso Furtado, em 1986. Trabalhando no sentido de convencer a opinião pública sobre a necessidade de uma pasta para cultura na esfera federal, ele se esforçou para consolidar uma estrutura administrativa para o MinC e, para isso, criou a primeira lei de incentivo à cultura, a chamada Lei Sarney – um mecanismo de fomento que previa o investimento privado através de renúncia fiscal.
Enquanto a pasta defendia políticas para proteger a herança cultural brasileira e garantir acesso a todos/as os/as brasileiros/as, a Assembleia Nacional Constituinte desenhava os novos contornos para a cultura dentro do país. A Constituição promulgada passou a encarar a cultura como um direito coletivo e público a ser promovido pelo Estado. Sob o estatuto de valor nacional, o tema passou a merecer cuidado e atuação com vista a suprir as necessidades culturais de cidadãos e cidadãs.
Precisamos de cultura?
Os ventos mudaram quando Fernando Collor de Mello assumiu a presidência em 1990. Logo no início, o governo extinguiu a Lei Sarney e o Ministério da Cultura foi rebaixado a uma Secretaria ligada à Presidência da República. Alegava-se que a legislação facilitava fraudes fiscais e que o assunto não merecia o estatuto de ministério.
No ano seguinte, o Secretário da Cultura, Sérgio Paulo Rouanet, apresentou novo projeto de lei que reformava a legislação anterior definindo como seria o financiamento cultural nos anos seguintes. A aprovação resultou na famosa (e controversa) Lei Rouanet. Nos primeiros anos da normativa, entre 1992 e 1994, o volume de captação não ultrapassou 6% do total de R$ 250mi disponibilizados pelo Estado para a renúncia fiscal e a área continuou enfraquecida.
A cultura como mercadoria
Um novo entendimento se consolidou ao longo da década de 1990. De início, ainda em 1992, o governo de Itamar Franco reverteu a extinção e reinstaurou o Ministério. Mas a mudança mais radical ocorreu durante a gestão de Fransico Weffort (ministro da Cultura entre 1995 e 2002 nos dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso), quando o Ministério abandonou a ideia de promotor das políticas e optou por assumir a posição de "regulador do mercado".
A Lei Rouanet ganhou relevância na administração. Dentre os seus mecanismos, constava o mecenato como possibilidade de gestão. Mas, afinal, como funciona a normativa? Um proponente encaminha uma proposta de financiamento ao Ministério descrevendo os orçamentos e prevendo a maneira como seriam utilizados os fundos obtidos. Uma vez aprovado o projeto, é necessário encontrar pessoas físicas ou jurídicas dispostas a apoiar a empreitada via renúncia fiscal.
Ao longo da década operou-se "uma espécie de migração de procedimentos típicos da indústria cultural e do mercado publicitário" para o Estado, conforme explica a socióloga Maria Arminda do Nascimento Arruda. Isto é, as empresas passaram a escolher projetos que lhes interessasse patrocinar conforme o alcance de divulgação para a marca. A cultura, sob esse paradigma, é entendida como insumo, um vetor de investimento para a economia nacional via incentivo privado.
Cultura: "símbolo de um povo"
A partir dos anos 2000, outras diretrizes assumem a direção da área cultural. Na gestão de Gilberto Gil, entre 2003 e 2008, a cultura passou a ser vista como um "conjunto de signos da comunidade". A proposta ampliava os significados, definindo que a cultura brasileira seria feita pelo povo e não por um grupo específico de pessoas que se julgariam detentores do sentido e do destino histórico do país. Políticas públicas como os Pontos de Cultura sintetizaram a essência do projeto: o Estado previa descentralizar os investimentos de áreas mais ricas do país e garantir que pessoa mais pobres pudessem expor e fomentar suas produções culturais. As políticas desse período não previam criar "cultura", mas sim garantir o florescimento das manifestações diversas que já existiam no país.
E o turismo?
Nota-se como, em pouco mais de três décadas, foram os muitos significados assumidos pelas políticas culturais. O que haverá, então, de novo nessa secretaria submetida ao Ministério do Turismo? Para isso, vale uma breve consideração acerca de como o Estado brasileiro lidou com essa área em particular.
Conforme conta o pesquisador Christian Magalhães, desde 1939 até o momento, o turismo foi alocado em dez diferentes instâncias de gestão federal – desde o Ministério da Justiça e de Negócios Interiores (1945-1946) até o Ministério de Esportes e do Turismo (1995-2002) – para, em 2003, ganhar uma pasta ministerial.
Nesse longo trajeto, ganha destaque as concepções assumidas durante os anos 1980. Isso porque, diante de uma economia fragilizada na "década perdida", o governo federal assumiu as atividades turísticas como alternativa para a dinamização econômica do país. O modelo turístico que passa a ser adotado pelo Brasil se pautou na expectativa do crescimento econômico a partir da disposição de nossos recursos naturais (praias, montanhas, dunas, florestas) e de nossos bens imateriais (festas típicas, danças, costumes, hospitalidade).
Já na década seguinte, a atividade passou a ser vista pelas políticas públicas como uma estratégia de projeção do Brasil no cenário internacional. Por isso foram feitos investimentos na "modernização" do setor: a implementação de equipamentos hoteleiros, a recepção de cadeias hoteleiras de bandeiras internacionais, os cursos de turismo de nível superior… O Estado agiria não como controlador, mas como um "dinamizador" da atividade.
Cultura como recurso para exportação?
Se a cultura logrou diversos significados – como direito, mercadoria e símbolo nacional –, o turismo, grosso modo, esteve marcado por um viés econômico, entendido como uma atividade de exploração dos "recursos" nacionais. Ao que tudo indica, com a migração da Secretaria da Cultura para o Ministério do Turismo, a cultura passará a significar mais um recurso a ser explorado pelo Estado e por estrangeiros. Resta ver como a banda tocará.
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