Felipe Neto e o controle vigilante: a censura está no meio de nós
Práticas censórias esfarrapam relações. De um lado, elas acossam a diversidade de ideias, de contradições e de negociações sociais – elementos fundamentais para o exercício da democracia. De outro, os atos persecutórios inviabilizam a confiança nas outras pessoas (vistas como potenciais delatoras) e, assim, corroem as condições necessárias para a existência do afeto, do trabalho conjunto e do diálogo.
Em tempos recentes, a perseguição tem atravessado todos os níveis do Estado brasileiro – na esfera federal, estadual e municipal – e, aos poucos, se naturaliza entre cidadãos e cidadãs. Mas o que é, afinal, a censura? O Observatório de Comunicação, Liberdade de Expressão e Censura da USP listou alguns critérios que servem para a definição:
- A censura é um ato que visa alterar, modificar, silenciar, interditar manifestações de produção simbólica – livros, revistas, encenações teatrais, músicas, notícias e afins
- Esse ato tende a fazer com que o público, a quem a obra se destina, seja privado de seu conteúdo
- É preciso que o ato censório se dê no espaço público ou nele repercuta
- A censura atua de forma a inibir certos conteúdos, sua menção ou defesa, sua discussão, buscando apagar interpretações da realidade não oportunas a certos grupos
- Os atos censórios tendem a ser justificados por razões morais e éticas, sempre vistas como universais e não históricas. Tendem também a ser considerados como forma de proteção a crianças, à família e outras entidades
- A censura sempre explicita a interpretação de mundo que se torna inconveniente, indesejável e que se deseja silenciar
- A censura, onde quer que se manifeste, é sempre política, tem a ver com o exercício do poder, com privilégios, com dominação
Importante dizer que a tradição de coibir ideias não é monopólio do Brasil. Em Portugal, por exemplo, a prática tornou-se comum em 1536 com a Inquisição: a Igreja Católica organizou uma burocracia especializada em monitorar dos hábitos e confiscar a circulação de ideias indesejadas. O historiador Robert Darton, no livro "Censores em ação", detalha os bastidores de vigilância na França dos Bourbons, na Índia britânica e na Alemanha Oriental. No caso de nosso país, a censura marcou presença durante todos os regimes políticos – na colônia, na Monarquia e na República –, conforme sugere a professora Maria Cristina Castilho Costa.
Particularmente durante a ditadura militar, duas formas de censura se institucionalizaram: aquela que regulava a diversão pública e a outra, responsável pela vigilância da imprensa. A primeira fiscalizava peças de teatro, filmes, programas de rádio e televisão em defesa da moralidade e dos "bons costumes" do povo – via o Serviço de Censura de Diversões Públicas (SCDP). E a segunda prática agia sobre jornais e revistas sem ser regulamentada por um órgão específico, conforme conta a historiadora Adrianna Setemy.
No cenário atual presenciamos justamente um procedimento que elimina a diversidade da sociedade nacional e fomenta a desconfiança entre nós.
As ações contra a diferença
Parece que alguns grupos sociais guardam, hoje, a nostalgia de um passado homogêneo e seguro – quando, a princípio, não existiriam pessoas LGBTI+, movimento negro, pautas feministas, defesa pela liberdade de expressão e assim por diante. São pessoas que procuram silenciar uma história que sempre foi bastante heterogênea e cheia de disputas. Nesses casos, a censura emerge como forma de controle vigilante sobre aquilo que incomoda.
Talvez por isso, alguns atos recentes perpetrados por governantes procuraram enclausurar as vozes dissonantes. Por exemplo, em abril, o presidente da República vetou uma propaganda do Banco do Brasil alegando não se tratar de censura, mas de "respeito com a população brasileira". A peça continha grande diversidade racial e de gênero (com participação de pessoas trans). Meses depois, o governador de São Paulo determinou o recolhimento de apostilas educativas para estudantes do 8º ano de escolas estaduais. João Doria declarou que o material continha "apologia à ideologia de gênero" – uma categoria incorreta do ponto de vista antropológico e biológico. Já na esfera municipal, o prefeito do Rio de Janeiro exigiu que a organização da Bienal Internacional do Rio retirasse das prateleiras a obra "Vingadores, a cruzada das crianças". Para Marcelo Crivella, os quadrinhos – com dois homens vestidos se beijando – violariam o Estatuto da Criança e do Adolescente por ter conteúdo com "cena de sexo explícito ou pornografia" ou ainda "mensagens pornográficas ou obscenas". Segundo o prefeito, a ação não configuraria censura ou homofobia, mas uma defesa "das famílias brasileiras".
Esses chefes do executivo recorreram a um argumento de proteção familiar. Tal qual pastores, a decisão sobre o que é saudável lhes competiria sem qualquer necessidade de ouvir as outras partes. É certo que cada caso pode ser explicado num contexto específico. Na Bienal do Rio de Janeiro, por exemplo, há quem defenda que o prefeito Crivella desejava realizar um fato político visando potenciais eleitores para as eleições municipais de 2020.
De toda forma, as ações censórias se espalham. Ainda em setembro, a Caixa Cultural Recife cancelou as apresentações do espetáculo Abrazo do grupo teatral Clowns de Shakespeare.O enredo expunha temas como ditadura, censura e repressão e tratava de um país no qual demonstrações de afeto eram proibidas. Segundo alega a instituição, no debate após a peça, a companhia teria tecido críticas a conjuntura política contemporânea e, assim, inflingia uma cláusula contratual que previa "zelar pela boa imagem dos patrocinadores, não fazendo referências públicas de caráter negativo ou pejorativo".
Inviabilizar a confiança
É importante frisar que os atos censórios não se restringem ao autoritarismo de um governo que quer coibir críticas e diferenças, mas se estendem para experiências que se implantam na opinião pública. Isto é, os efeitos da perseguição acometem nossa subjetividade.
Primeiro, a censura se torna cotidiana. Passamos a empregar o recurso para calar o outro: aquela pessoa de quem discordamos, o sujeito que nos critica, o jornalista que denuncia irregularidades. Sem notar, os recursos de silenciamento se cristalizam na cultura e se disseminam no ambiente de trabalho, no transporte público e até em nossas casas.
Em segundo lugar, diante de uma cultura censória, todas as pessoas tornam-se potenciais delatores. A vigilância traz desconfiança, impede trocas, gera um empobrecimento do debate e a impossibilidade de novos rumos.
Em terceiro lugar, quando as práticas censórias começam, elas dificilmente são controladas. De início, afetam um discurso em especial – como, por exemplo, a vida de pessoas LGBTI+. Entretanto, na medida em que avança a sanha pelo controle, a perseguição pode exigir que qualquer diferença seja eliminada – se antes o beijo entre dois homens incomodava, agora são as pessoas divorciadas, em seguida, aquelas que não professam exatamente determinada corrente religiosa… O limite do controle, nesse caso, se transforma na ausência do heterogêneo.
A censura, portanto, não é exclusivamente praticada pelo Estado. Precisa do aval e do envolvimento do conjunto social. Caso as pessoas reajam e pleiteiem pela liberdade e em favor da diferença, poderemos continuar praticando um exercício republicano e democrático.
É preciso, por isso, garantir que iniciativas como as de Felipe Neto e do coletivo Nonada – Jornalismo Travessia existam. O famoso Youtuber reagiu ao desmando de Crivella comprando e distribuindo todos os livros LGBTI+ da Bienal do Rio e, hoje, relata severas ameaças à sua vida. Já o coletivo jornalista, lançou uma iniciativa cujo propósito é mapear casos de censura à arte ocorridos no Brasil desde o episódio do Queermuseu em 2017.
Pautas contra a censura são fundamentais, afinal, a vigilância descontrolada e arbitrária contra a diversidade dilacera a voz, embrutece as emoções e entope a reflexão.
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