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Bernardo Machado

Felipe Neto e o controle vigilante: a censura está no meio de nós

Bernardo Machado

17/09/2019 13h01

Práticas censórias esfarrapam relações. De um lado, elas acossam a diversidade de ideias, de contradições e de negociações sociais – elementos fundamentais para o exercício da democracia. De outro, os atos persecutórios inviabilizam a confiança nas outras pessoas (vistas como potenciais delatoras) e, assim, corroem as condições necessárias para a existência do afeto, do trabalho conjunto e do diálogo.

Em tempos recentes, a perseguição tem atravessado todos os níveis do Estado brasileiro – na esfera federal, estadual e municipal – e, aos poucos, se naturaliza entre cidadãos e cidadãs. Mas o que é, afinal, a censura? O Observatório de Comunicação, Liberdade de Expressão e Censura da USP listou alguns critérios que servem para a definição:

  1. A censura é um ato que visa alterar, modificar, silenciar, interditar manifestações de produção simbólica – livros, revistas, encenações teatrais, músicas, notícias e afins
  2. Esse ato tende a fazer com que o público, a quem a obra se destina, seja privado de seu conteúdo
  3. É preciso que o ato censório se dê no espaço público ou nele repercuta
  4. A censura atua de forma a inibir certos conteúdos, sua menção ou defesa, sua discussão, buscando apagar interpretações da realidade não oportunas a certos grupos
  5. Os atos censórios tendem a ser justificados por razões morais e éticas, sempre vistas como universais e não históricas. Tendem também a ser considerados como forma de proteção a crianças, à família e outras entidades
  6. A censura sempre explicita a interpretação de mundo que se torna inconveniente, indesejável e que se deseja silenciar
  7. A censura, onde quer que se manifeste, é sempre política, tem a ver com o exercício do poder, com privilégios, com dominação

Importante dizer que a tradição de coibir ideias não é monopólio do Brasil. Em Portugal, por exemplo, a prática tornou-se comum em 1536 com a Inquisição: a Igreja Católica organizou uma burocracia especializada em monitorar dos hábitos e confiscar a circulação de ideias indesejadas. O historiador Robert Darton, no livro "Censores em ação", detalha os bastidores de vigilância na França dos Bourbons, na Índia britânica e na Alemanha Oriental. No caso de nosso país, a censura marcou presença durante todos os regimes políticos – na colônia, na Monarquia e na República –, conforme sugere a professora Maria Cristina Castilho Costa.

Particularmente durante a ditadura militar, duas formas de censura se institucionalizaram: aquela que regulava a diversão pública e a outra, responsável pela vigilância da imprensa. A primeira fiscalizava peças de teatro, filmes, programas de rádio e televisão em defesa da moralidade e dos "bons costumes" do povo – via o Serviço de Censura de Diversões Públicas (SCDP). E a segunda prática agia sobre jornais e revistas sem ser regulamentada por um órgão específico, conforme conta a historiadora Adrianna Setemy.

No cenário atual presenciamos justamente um procedimento que elimina a diversidade da sociedade nacional e fomenta a desconfiança entre nós.

As ações contra a diferença

Parece que alguns grupos sociais guardam, hoje, a nostalgia de um passado homogêneo e seguro – quando, a princípio, não existiriam pessoas LGBTI+, movimento negro, pautas feministas, defesa pela liberdade de expressão e assim por diante. São pessoas que procuram silenciar uma história que sempre foi bastante heterogênea e cheia de disputas. Nesses casos, a censura emerge como forma de controle vigilante sobre aquilo que incomoda.

Talvez por isso, alguns atos recentes perpetrados por governantes procuraram enclausurar as vozes dissonantes. Por exemplo, em abril, o presidente da República vetou uma propaganda do Banco do Brasil alegando não se tratar de censura, mas de "respeito com a população brasileira". A peça continha grande diversidade racial e de gênero (com participação de pessoas trans). Meses depois, o governador de São Paulo determinou o recolhimento de apostilas educativas para estudantes do 8º ano de escolas estaduais. João Doria declarou que o material continha "apologia à ideologia de gênero" – uma categoria incorreta do ponto de vista antropológico e biológico. Já na esfera municipal, o prefeito do Rio de Janeiro exigiu que a organização da Bienal Internacional do Rio retirasse das prateleiras a obra "Vingadores, a cruzada das crianças". Para Marcelo Crivella, os quadrinhos – com dois homens vestidos se beijando – violariam o Estatuto da Criança e do Adolescente por ter conteúdo com "cena de sexo explícito ou pornografia" ou ainda "mensagens pornográficas ou obscenas". Segundo o prefeito, a ação não configuraria censura ou homofobia, mas uma defesa "das famílias brasileiras".

Esses chefes do executivo recorreram a um argumento de proteção familiar. Tal qual pastores, a decisão sobre o que é saudável lhes competiria sem qualquer necessidade de ouvir as outras partes. É certo que cada caso pode ser explicado num contexto específico. Na Bienal do Rio de Janeiro, por exemplo, há quem defenda que o prefeito Crivella desejava realizar um fato político visando potenciais eleitores para as eleições municipais de 2020.

De toda forma, as ações censórias se espalham. Ainda em setembro, a Caixa Cultural Recife cancelou as apresentações do espetáculo Abrazo do grupo teatral Clowns de Shakespeare.O enredo expunha temas como ditadura, censura e repressão e tratava de um país no qual demonstrações de afeto eram proibidas. Segundo alega a instituição, no debate após a peça, a companhia teria tecido críticas a conjuntura política contemporânea e, assim, inflingia uma cláusula contratual que previa "zelar pela boa imagem dos patrocinadores, não fazendo referências públicas de caráter negativo ou pejorativo".

Inviabilizar a confiança

É importante frisar que os atos censórios não se restringem ao autoritarismo de um governo que quer coibir críticas e diferenças, mas se estendem para experiências que se implantam na opinião pública. Isto é, os efeitos da perseguição acometem nossa subjetividade.

Primeiro, a censura se torna cotidiana. Passamos a empregar o recurso para calar o outro: aquela pessoa de quem discordamos, o sujeito que nos critica, o jornalista que denuncia irregularidades. Sem notar, os recursos de silenciamento se cristalizam na cultura e se disseminam no ambiente de trabalho, no transporte público e até em nossas casas.

Em segundo lugar, diante de uma cultura censória, todas as pessoas tornam-se potenciais delatores. A vigilância traz desconfiança, impede trocas, gera um empobrecimento do debate e a impossibilidade de novos rumos.

Em terceiro lugar, quando as práticas censórias começam, elas dificilmente são controladas. De início, afetam um discurso em especial – como, por exemplo, a vida de pessoas LGBTI+. Entretanto, na medida em que avança a sanha pelo controle, a perseguição pode exigir que qualquer diferença seja eliminada – se antes o beijo entre dois homens incomodava, agora são as pessoas divorciadas, em seguida, aquelas que não professam exatamente determinada corrente religiosa… O limite do controle, nesse caso, se transforma na ausência do heterogêneo.

A censura, portanto, não é exclusivamente praticada pelo Estado. Precisa do aval e do envolvimento do conjunto social. Caso as pessoas reajam e pleiteiem pela liberdade e em favor da diferença, poderemos continuar praticando um exercício republicano e democrático.

É preciso, por isso, garantir que iniciativas como as de Felipe Neto e do coletivo Nonada – Jornalismo Travessia existam. O famoso Youtuber reagiu ao desmando de Crivella comprando e distribuindo todos os livros LGBTI+ da Bienal do Rio e, hoje, relata severas ameaças à sua vida. Já o coletivo jornalista, lançou uma iniciativa cujo propósito é mapear casos de censura à arte ocorridos no Brasil desde o episódio do Queermuseu em 2017.

Pautas contra a censura são fundamentais, afinal, a vigilância descontrolada e arbitrária contra a diversidade dilacera a voz, embrutece as emoções e entope a reflexão.

Sobre o Autor

Bernardo Fonseca Machado é doutor em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo. Desde 2018, trabalha como professor na Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás. Também foi Visiting Student Research Collaborator na Universidade de Princeton, nos Estados Unidos (2015-2016) e, em 2016, co-escreveu o livro Diferentes, não desiguais: a questão de gênero na escola pelo selo Reviravolta da Companhia das Letras. Desenvolve pesquisas acadêmicas como membro dos grupos Etnohistória e do NUMAS (Núcleo dos Marcadores Sociais da Diferença), ambos da USP.

Sobre o Blog

Cultura, relações sociais, diversidade, diferença e desigualdade são temas centrais do blog. A proposta é discutir noções e práticas contemporâneas que afetam nossas percepções de mundo utilizando a metodologia da antropologia.