A antiga e as novas independências
No próximo sete de setembro, o Brasil celebra a emancipação política de Portugal. Enquanto algumas pessoas irão às ruas para ver o cortejo militar, outras devem realizar manifestações contra os cortes na educação e haverá ainda quem permanecerá em casa para desfrutar do descanso garantido pelo feriado. Independentemente de sua preferência, proponho aproveitar a data para outras duas finalidades: primeiro, atualizar nossa memória a respeito da sequência de fatos que antecederam o grito de D. Pedro I e, em seguida, discutir algumas das dependências que ainda nos assolam.
Comecemos pelo passado. O evento de 1822 pode ser explicado por um conjunto de fatores, tanto internos quanto externos, conforme analisa o historiador Boris Fausto. No além-mar, Portugal era palco de uma profunda crise. Se no campo político, a ausência do Rei D. João causava grande desconforto, no plano econômico, a liberdade do comércio beneficiava em demasia o Brasil. Como resultado, no final de 1820, uma Junta Provisória se formou para governar em nome do rei e, em paralelo, exigir seu retorno imediato à metrópole.
Na colônia, D. João estava dividido: não desejava voltar e tampouco lhe agradava a ideia de mandar o filho Pedro para Portugal. A decisão forçada veio em 07 de março de 1821, quando os decretos emitidos em Lisboa determinaram o regresso do rei. Pouco mais de um mês depois, em 26 de abril de 1821, grande parte da família real, com exceção de D. Pedro, embarcou para a metrópole. O temor na diminuição da autonomia brasileira cresceu e criou alvoroço nas províncias.
O ano de 1822 começou agitado. Ainda em janeiro, D. Pedro recebeu carta de José Bonifácio pedindo para que permanecesse na colônia e "não se tornasse escravo de um pequeno número de desorganizadores" – os portugueses. Na semana seguinte, um documento com 8 mil assinaturas pedia ao filho do monarca que não deixasse o Brasil. Parte da população desejava a presença do herdeiro no território de modo a evitar a maré recolonizadora que soprava da metrópole. Como resposta à essas demandas, o regente teria dito a famosa frase "diga ao povo que fico".
Diante da instabilidade, os grupos políticos no Brasil se dividiram entre aqueles que advogavam por uma monarquia constitucional e outros que preferiam a independência via uma República com voto popular. Em meio às disputas, d. Pedro partiu, em 14 de agosto de 1822 para São Paulo com o objetivo de apaziguar os ânimos de uma revolta na província. Durante sua ausência, chegaram más notícias de Lisboa. As forças políticas portuguesas ordenavam tanto a volta imediata do príncipe quanto o fim de uma série de medidas econômicas que privilegiavam os brasileiros.
Ao tomar ciência das notícias, d. Pedro teria feito o gesto que ficou historicamente conhecido. O rapaz de 24 anos, montado em sua besta, acometido por um mal-estar intestinal, fatigado pela viagem, arrancou a fita azul-clara e branca (símbolo das cores constitucionais portuguesas) que estava em seu chapéu e, ao desembainhar a espada, teria gritado: "É tempo!… Independência ou Morte!". Após o ato – que não parece ter sido muito grandioso –, seguiram-se outras ações e decisões que passaram a produzir a independência nacional.
Desta breve – e incompleta – retomada histórica, chamo atenção para algumas características. Em primeiro lugar, considero pertinente salientar como os eventos históricos são – muitas vezes – turbulentos e repletos de interesses variados. Nossa independência não ocorreu livre de escolhas políticas – tais como as disputas que participamos hoje em dia. A história se faz o tempo todo. Em segundo lugar, vale grifar como nossa independência gerou uma monarquia e não uma república – ao contrário de outras independências no continente americano. As mudanças não foram, assim, radicais: assumiu um rei, descendente monarca – e português – da Casa dos Bragança. Como aprendemos com Lilia Schwarcz e Heloisa Starling, essa saída conservadora não era a única possível, poderíamos ser, já na primeira metade do XIX, uma república: "se o movimento foi liberal, porque rompeu com a dominação colonial, mostrou-se conservador ao manter a monarquia, o sistema escravocrata e o domínio senhorial".
Ao fim, e ao cabo, o Brasil tornou-se uma monarquia independente e já começou sua trajetória endividado: para que Portugal reconhecesse o ato, a antiga colônia deveria indenizar a metrópole em 2 milhões de libras. O ciclo de dependências se atualizou. A partir de então, acumulamos novas subordinações na esfera econômica e no quadro do sistema político internacional.
Dessa forma, vale perguntar: quais independências ainda devemos proclamar? A lista é, ao meu ver, consideravelmente longa. As dependências, por sinal, podem se remeter a sujeição a outro sujeito ou entidade (os Estados Unidos, a Europa, o sistema bancário) ou podem também se relacionar a um hábito – um vício – nacional. Me deterei neste segundo formato, particularmente em dois costumes que interferem no cotidiano contemporâneo: a dependência da irresponsabilidade e a dependência do verbicídio. Explico.
Impera no país certa compulsão social em negar a responsabilidade por nossos atos. É comum considerarmos que os problemas do Brasil estão no passado: ou eles não existem mais ou não podem ser solucionados. Também assumimos que os problemas da nação são de responsabilidade de um único fator: "os políticos", um partido em específico, "a corrupção"… Essa dependência em negar a nossa própria responsabilidade enquanto sociedade traz como consequência a impossibilidade de superar, por exemplo, práticas racistas seculares, a desigualdade estrutural, o tratamento sexista invisível e as violências lgbtifóbicas atávicas – apenas para citar algumas. Tal cacoete, rotineiro no comportamento, nos impede de uma liberdade social plena.
Mas há ainda uma segunda forma de dependência social bastante comum na atualidade: o assassinato das palavras. Toda vez que nos deparamos com uma resposta simplória para fenômenos complexos, quando optamos por reduzir nosso vasto vocabulário a xingamentos e nas ocasiões em que decidimos empregar uma lógica bélica para lidar com qualquer conflito, realizamos um verbicídio – matamos nossa gramática. Na medida em que exterminamos as pesquisas, as universidades, o teatro, o cinema e a literatura reduzimos nossa linguagem e nos tornamos subordinados a um pensamento estreito. Aos poucos, essa dependência por soluções simplistas se torna vício e, logo, servidão.
Desse modo, no dia sete de setembro, enquanto celebrarmos a independência nacional, talvez seja pertinente retomar tanto nossos percalços históricos e quanto refletir sobre as futuras independências que precisamos, ainda, proclamar.
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